Pax Pamir foi o jogo mais importante de 2019 para mim. Apesar de ser um relançamento, esta segunda edição de Cole Wehrle trouxe mudanças significativas e relevantes para tratá-lo como um jogo a parte. Além da produção incrível e do desenrolar fluído de seu ritmo, Pax Pamir é um marco importante para entendermos os limites das experiências que jogos de tabuleiros modernos podem proporcionar.
Contexto Temático:
Em Pax Pamir, os jogadores assumem o papel de líderes afegãos no século XIX logo após o colapso do antigo império, em uma tentativa de forjar um novo estado. Essa reconstrução no entanto ocorre num período marcado pela rivalidade entre os Impérios Russo e Britânico principalmente pela disputa territorial da Ásia Central onde o Afeganistão se encontrava como centro estratégico. Tal rivalidade pode ser referenciada como uma Guerra Fria de sutis jogos de exploração, espionagem, conflitos diplomáticos e ameaças constantes, mas nunca com um confronto direto entre as forças. Esse período ficou conhecido historicamente como O Grande Jogo.
E é entendendo o panorama desse contexto que começa a surgir a beleza de Pax Pamir. Em linhas gerais, durante o período do Grande Jogo no Afeganistão temos 3 interesses distintos, dos próprios Afegãos e suas dinastias buscando recuperar suas identidades consolidando seu território, da Grã Bretanha tentando proteger os seus domínios formando um estado-tampão e do Império Russo expandindo-se rapidamente e quebrando fronteiras.
3 lados, 3 agendas distintas e um território parado no meio. Essa frase associada a um jogo que possui o controle de área como uma de suas mecânicas, nos faz pensar imediatamente em pessoas escolhendo uma das três forças para controlarem e disputarem seus pontos de vitória, o problema é que em Pax Pamir nenhuma dessas agendas é sua, neste jogo encarnamos chefes tribais nos quais esses impérios devem confiar para atingir seus objetivos, sendo assim, podemos ser leais e nos utilizarmos das forças de quem nos convir mais em determinados momentos, aqui, os impérios são vistos pela perspectiva dos Afegãos que durante todo o tempo, buscarão manipular esses invasores estrangeiros para benefício próprio.
Em outras palavras, o Grande Jogo não é jogado por seus reis e rainhas, e sim pelos seus intermediários.
Controle o mercado para controlar os territórios
É difícil fala de Pax Pamir sem passar um pouco sobre suas mecânicas, tarefa bem mais fácil nessa segunda edição que teve sua jogabilidade simplificada tornando-o bem mais acessível.
O Jogo se desvenda na mesa em dois cenários: um mapa do Afeganistão e um mercado onde ficam disponíveis 12 cartas para a compra que são repostas a cada turno de jogador. E, apesar de em jogos com controle de área a ação ser focada no mapa, aqui, é no mercado onde reside a maior parte da atenção dos jogadores.
Somente duas ações por turno são fornecidas para cada jogador, e basicamente no início da partida as únicas duas ações possíveis são comprar e/ou baixar uma carta na sua corte (tableau), e é na ação de jogar cartas e na construção dessa corte, que exércitos, estradas, líderes tribais e espiões começam a surgir sobre a mesa.
Cada carta possui ações de impacto imediato, que no ato de serem jogadas promovem peças do jogador e do império ao qual ele é leal. Ainda melhor que isso, cada carta também disponibiliza novas ações que podem ser utilizadas naquele limite de duas por turno e/ou também como ações bônus.
As cartas se dividem em quatro tipos (Militar, econômico, político e inteligência) e sempre durante toda a partida, uma dessas categorias estará ativa configurando o clima da atual siuação afegã e tornando livres (sem contar o limite de 2 por turno) as ações do seu tableau que estiverem associadas aquela categoria (cartas do mesmo tipo que está ativo no tabuleiro). Isso torna ainda mais importante as escolhas de cada jogador no mercado, pois a construção de sua mão e o timing de jogar cada carta, podem gerar um combo de 6, 7 ações efetivas, tornando-se algo extremamente poderoso se pensarmos que estamos falando de turnos que são originalmente limitados a apenas 2 ativações.
Um parentese importante sobre essa dinâmica das cartas e para entender a importância das escolhas nesse espaço do jogo, é o fato de estarmos falando de um mercado de economia fechada. No início da partida cada jogador recebe 4 moedas, e esse será basicamente o dinheiro disponivel durante a maior parte do jogo. Para que dinheiro novo entre numa partida, é necessário jogar uma carta com o simbolo de alavancagem, isso adiciona 2 moedas na economia, porém se o jogador por algum motivo perder aquela carta, ele precisa pagar aquelas moedas, reduzindo o total disponível novamente. Esse dinheiro irá circular entre os jogadores através do mercado seja na compra de cartas ou no pagamento do custo de algumas ações. Ou seja, as suas escolhas nesse aspecto são imensurávelmente estratégicas, seja para ampliar seu leque de possibilidades de ações e manobras, seja para se capitalizar ou interferir efetivamente na economia disponível.
No meio desse mercado surgem cartas de evento, que se compradas ou descartadas, geram alguma condição especial no jogo, e 4 dessas cartas de evento, são especiais,chamadas de cartas de dominância. Uma vez compradas elas geram uma fase de resolução e pontuação. E esse é o fato , que faz toda mágica da jornada de Pax Pamir acontecer.
O xadrez estratégico de lealdade e influência
A pontuação no jogo se dá da seguinte forma: no ato que uma carta de dominância é comprada ou descartada, primeiramente checamos se alguma das 3 forças beligerantes é dominante no " teatro" desse conflito. A dominância se dá quando um dos
impérios (que podem ter a lealdadade de um ou mais
jogadores), possui pelo menos 4 peças a mais (exérciotos e/ou estradas) que os outros no mapa. Nesse caso ele vence a batalha atual, mas não a guerra. Nesse caso, os líderes - aqui sim falamos dos jogadores - que se mostraram mais influentes para esse império, agora ganha alguns pontos (na proporção 5/3/1). Então todo mundo faz as malas e vai para casa. Todos esses exércitos em guerra são removidos do mapa e o jogo recomeça com as hostilidades voltando a serem vivenciadas.
No entanto, é possível que nenhum império seja dominante, e aí, os líderes se aproveitam do "caos" para ganharem pontos com base no controle bruto que exercem sobre o campo com suas redes de espionagem e controle de tribos regionais. (Agora só os dois mais eficientes na proporção de 3/1)
A cereja do bolo nesse sistema de pontuação, é que em qualquer momento que algum jogador abra 4 pontos de vantagem, o jogo acaba imediatamente e é aqui que Pax Pamir demonstra um profundo nível de interação que os jogos modernos podem proporcionar.
A transitoriedade como regra
Não importa como a mesa esteja configurada, se todos os jogadores são leais ao mesmo império, se cada um apóia uma força diferente. A tensão em pax pamir será construida ao longo do surgimento de cada carta de dominância, essas por sua vez mais do que o prenúncio do fim de uma "rodada" se tornam um momento de clímax da partida. As suas estratégias políticas nesse meio tempo é o que criarão suas chances de sucesso e vitória e o mais importante, suas convicções precisarão ser constantemente reavaliadas.
Descobrir em qual lealdade apostar, quais alianças fazer e basicamente como gerenciar o equilibrio de forças no cenário de Pax Pamir são tarefas tão constantes como tempestades de vento no deserto, em vez de travar uma grande guerra buscando a vitória para um dos lados, os jogadores precisam forjar alianças convenientes, escolher suas rivalidades e vencer suas batalhas, uma a uma, em um exercício de sobreviência e adaptação que precisa se adequar de acordo com os acontecimentos de cada partida, aliás, de cada teste de dominância.
Devido sua natureza ITERATIVA (sem o N mesmo) Pax Pamir constrói uma experiência única a cada partida. Não há caminhos óbvios, assimetrias pré definidas, poderes diferentes, cartas fortes, combos conhecidos ou estratégias vencedoras. Jogue 10 vezes com as mesmas pessoas e por 10 vezes todas terão comportamentos diferentes em cada partida. Tudo em Pax Pamir é construído a cada jogada, a cada peça que entra na mesa, a cada decisão dos jogadores.
Kudos Cole Wehrle
E a forma que se dá essa construção evidencia a beleza do sistema que Cole Wehrle desenhou para essa segunda edição, extremamente mais palatável. A progressão que o jogo vai construindo suas camadas de profundidade, acontecendo inicialmente apenas com duas ações possíveis (comprar e jogar uma carta) e escalando para uma sucessão de movimentos estratégicos e políticos, acontece em um ritmo perfeito, injetando escolhas e decisões cada vez mais relevantes conforme os jogadores vão compreendendo a dinâmica do jogo.
E nesse ponto eu paro mais uma vez para exaltar e admirar incessantemente a genialidade de Cole Wehrle, disparado o meu designer favorito, aliás o único que me dou o trabalho de acompanhar o conjunto da obra.
Primeiro, o talento que ele tem de compreender a essência por trás dos sistemas e configurações de um jogo e torná-los mais acessíveis e palatáveis, como fez com o sistema COIN em Root e como faz agora com a complexa série PAX nesta segunda edição de Pax Pamir.
Segundo, a capacidade de explorar o tema de seus jogos através da interação dos jogadores, e não de duas toneladas de plástico e miniaturas ou produções faraônicas com uma bíblia de texto para contar uma história pré definida. Este jogo tem seu tema escorrendo por todas as regras e ações - a mudança de lealdade, os "prêmios" capturados, os lideres patriotas e presentes para ganhar influência, tribos da mesma facção não lutando no mapa, mas usando espiões para lutar fora da vista de seus impérios, a mudança do clima político pagando subornos e assim por diante.
Após qualquer partida de Pax Pamir (segunda edição), você pode narrar o jogo de forma que possa parecer um pedaço da história. Haverá uma narrativa construída através da dinâmica dos jogadores. Das alianças que se formaram e se desfizeram, dos líderes assassinados, da lealdade ambígua e volátil que cada jogador assume para sobreviver entre uma disputa de poderosos impérios.
Pax Pamir procura se concentrar nessas redes dinâmicas; seu sujeito da história não é o Império ou o Estado, mas também não é a Tribo ou o Indivíduo. É a rede instável, sempre em formação que se constrói nas fendas entre as potências, sempre buscando uma oportunidade de avançar, mesmo que precise mudar completamente sua natureza. O resultado que surgir de todos esses movimentos, podemos depois chamar de história.
Epílogo
Alguns dos melhores jogos que eu gosto envolvem regras pesadas, setups trabalhosos, uns cálculos complexos, interações muitas vezes menores do que gostaria , pouca conversa entre os jogadores, e alguns caminhos estratégicos mais óbvios. Muitos inclusive acabam tendo dificuldade de ver mesa até por preguiça minha, mesmo achando jogos espetaculares.
Então surge Pax Pamir como sendo um jogo profundo e pesado, com configuração mínima, cálculos básicos, com uma interação desenvolvida com primor de design, que promove discussões durante as sessões, uma natureza iterativa que gera uma rejogabilidade quase infinita e desepeja uma carga de diferentes emoções a cada vez que vai pra mesa. Um jogo que explora seu tema no desenvolvimento da sua dinâmica.
Tentei de várias formas achar os pontos negativos de Pax Pamir, mas até o momento não tenho o que apontar. Este jogo estabeleceu os parâmteros do que realmente valorizo em experiências lúdicas, se tornou aquele título que eu sempre vou querer jogar, o tempo todo, com a empolgação de estar descobrindo um jogo novo a cada partida. Por essas e outras, Pax Pamir foi o jogo mais importante que conheci em 2019 e que provavelmente irei carregar por muitos anos ainda.
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