Que jogo é esse?
A alocação de trabalhadores talvez seja uma das mecânicas mais comuns e simples no universo dos boardgames. É o feijão com arroz dos designers que muitas vezes serve como base para a construção do cardápio que compõe a experiência de seus jogos.
Ao longo do tempo, vemos inúmeras tentativas de variações criativas dessa base, que geralmente acaba dando o “sabor” de novidade e em algumas ocasiões, até se torna uma assinatura particular do criador do jogo.
Pois bem, Anachrony é basicamente um jogo de alocação de trabalhadores. E se formos analisar de forma crua a base que compõe os sistemas do jogo, Anachrony apresenta mecanicamente poucas ou talvez nenhuma inovação. O jogo traz no entanto, os “trabalhadores” mais super produzidos que o mercado já viu. Muitos dizem que Caylus é a origem do workerplacement (apesar de haver outros jogos antes dele com a utilização dessa mecânica como Keydom e Bus, mas Caylus realmente a tornou popular) e se voltarmos a esse jogo, veremos que nossos trabalhadores eram cilindros chatos de cores diferentes, de lá pra cá já vimos, cubos, meeples das mais diversas formas e até cartas (como em gugong) assumindo esse papel. Porém em Anachrony a produção eleva o nível, tokens representando os personagens humanos, são encaixados em miniaturas lindas de exo-esqueletos mecânicos formando super trabalhadores para serem enviados ao ambiente inóspito e perigoso que o tabuleiro representa para… fazer ações simples e normais como coletar recursos, recrutar mais trabalhadores e construir novos espaços de alocação.
Mas então há a viagem no tempo, uma mecânica absolutamente inovadora que dá o sabor de novidade ao gameplay. Hmmm, não. Ainda que muitos torçam o nariz para o que vou falar agora, a viagem no tempo é sim um sistema de empréstimo. Onde você é credor de si próprio no passado. Você pede um recurso emprestado e se não devolver para se pagar será penalizado. Simples assim.
Bom, então chegamos a conclusão que Anachrony é um jogo passavel por ser mais do mesmo e não acrescentar nada na coleção.
Errado de novo. Anachrony está no meu top 10 da vida e talvez top 5. Não é mais um jogo de alocação de trabalhadores e sim uma das melhores implementações dessa mecânica que existe no mercado. Isso porque o jogo consegue integrar sistemas simples em sua temática com uma competência raramente vista, provando a máxima que inovação não está necessariamente a invenções mirabolantes, mas também em perspectivas diferentes sobre soluções já existentes.
Esse é um texto sobre análise e não sobre regras (isso é função de manual rs), por isso, como de costume, não vou me aprofundar nelas. Mas basicamente Anachrony se divide em duas grandes fases (apesar de serem 7 ao todo) a de empréstimo (Viagem no tempo) e a de alocação de trabalhadores.
Viagem no tempo
A história de Anachrony resumidamente é a seguinte: a Terra foi devastada por uma explosão nuclear e se dividiu em 4 facções que vivem sob a superfície que se tornou contaminada pela radiação. As alterações no entanto abriram fendas temporais que permitem que as facções sejam capazes de viajar no tempo acelerando seu progresso porém tomando cuidado para não gerar paradoxos temporais. No entanto os riscos temporais e a necessidade de progresso são cada vez mais necessários já que um cataclisma ainda maior está prestes a acontecer com a chegada de um meteoro no futuro e as facções precisam se programar para a evacuação completa do planeta.
Viagem no tempo em jogos de tabuleiro, convenhamos, é uma tarefa extremamente complexa de se implementar. Na disputa por recursos num ambiente escasso, em Anachrony a solução para acelerar seu progresso e maximizar seus turnos, é obter instantaneamente as suas necessidades enviadas para si mesmo do futuro. E em algum período a frente ser capaz de voltar no tempo (turno) que pediu os recursos e desperdiçar os mesmos pagando para reserva. Sim, é um empréstimo. Mas, quem antes pensou que essa mecânica tão simples pudesse se encaixar de forma tão perfeita no conceito de Viagens temporais?
O jogo tem um limite máximo de 7 turnos, quatro antes do impacto do meteoro e 3 após (onde o jogo acelera e pode inclusive terminar antes da sétima rodada), e deixar aberto esses empréstimos temporais, geram consequências extremamente negativas para a pontuação final. A Cada turno novo, os recursos não devolvidos que foram pegos nos turnos do passado, podem gerar tokens de paradoxos, que ao chegarem em 3 ou 4 dão uma anomalia para o tabuleiro do jogador gerando pontuação negativa. Também no início do turno os jogadores decidem numa espécie de purrinha, quais e quantos recursos irão pedir do futuro. A purinha serve para gerar uma tensão de qual espaço do tempo os tokens irão entrar, já que há espaços com penalidades e bonificações.
O fato , é que os turnos estarem dispostos em uma espécie de linha do tempo e haver sistemas de deslocamento do jogador entre eles para um gerenciamento de recursos é uma adaptação GENIAL que cola o tema no jogo e nos faz mergulhar de cabeça na temática de viagem no tempo.
Super Trabalhadores
Conforme disse no início do texto, apesar de toda super produção e dualidade de camadas (com e sem exo-esqueleto) mecanicamente o jogo traz uma alocação de trabalhadores simples. As costuras dessa implementação no entanto é o que dá o sabor gourmet ao tradicional sistema. Começando pela variação de habilidades de quatro tipos diferentes de trabalhadores, cientista, engenheiro, administrador e gênio (ou coringa). Cada um desses trabalhadores geram bônus ou possuem restrições específicas nos espaços disponíveis no tabuleiro (todas fazendo sentido tematicamente, como o engenheiro ter disconto nas construções, o cientista ser o único capaz de fazer pesquisas, etc.) . Isso se torna interessante por alguns motivos. Primeiro é importante dizer que a quantidade de espaços de alocação no tabuleiro principal de Anachrony é absurdamente limitada. Sendo que há espaços onde determinados tipos de trabalhadores não podem ir. Isso por si só gera aquela tensão constante de ter que replanejar seu turno por falta de espaços ou por não ter o tipo de trabalhador disponível para as ações que sobraram.
Jogos com esse tipo de mecânica, geram o ímpeto de rushar para recrutar novos trabalhadores aumentando o máximo possível a variedade de sua equipe. No entanto, apenas alguns tipos de trabalhadores estarão disponíveis para recrutamento em cada round em uma reserva comum a todos os jogadores, e com poucos espaços de alocação para realizar essa tarefa, isso aumenta ainda mais a tensão já que pode travar jogadores no início da construção de seu engine por não ter a variedade suficiente de trabalhadores no seu time. A disponibilidade dos trabalhadores se torna ainda mais apertada somando o fato de que ao recuperá-los na fase de clean up, a grande maioria voltará cansada, ou seja, inativa para o round seguinte. E para ativá-los você pode fazer de forma agressiva, perdendo pontos de final de jogo regredindo na trilha de moral ou gastando seus escassos recursos para conseguir disponibilizá-los e ainda avançar sua moral sendo reconhecido como um grande líder.
Por fim, a divisão em dois níveis dos trabalhadores é mais uma daquelas implementações temáticas geniais do do designer. Lembrando que temos os trabalhadores humanos (tokens) e os exo-esqueletos. O Playboard do jogadore é uma espécie de base da sua facção e ele funciona como um tableu building onde você vai construindo novos espaços de trabalho para sua equipe. Para alocar os trabalhadores nesses espaços "seguros" dentro da base você não precisa dos exo´s basta alocar os tokens e realizar a ação. Já para enviá-los ao tabuleiro principal que é o ambiente externo contaminado pela radiação, você precisa das miniaturas. PORÉM aqui temos um desafio logístico super interessante, pois para utilizar os exo´s você precisa ativá-los e para tanto gastar os recursos pedidos, sendo ainda que os exo´s que você não ativa, rendem um recurso de água (que você economizou por não gastá-la nas máquinas) e que é de grande importância pro jogo.
Conclusão:
Antes de mais nada a Mindclash Games pra mim se tornou selo de qualidade, de jogos incríveis com produções lindas, e talvez Anachrony seja a melhor de suas obras primas.
Na minha opinião é o euro mais competente na escolha e implementação de mecânicas ao tema que propõe. E ganha ainda mais a minha admiração por usar mecânicas e sistemas absolutamente simples para tanto. O conceito de viagem no tempo através do sistema de empréstimo é genial, assim como a construção da engenharia de alocação dos nossos incríveis trabalhadores.
A assimetria das facções parece muito sutil à primeira vista, mas conforme se joga, percebe-se que muda completamente a experiência do jogador. Experiência essa que dificilmente será decepcionante. Anachrony entrega MUITO. Constrói com maestria um universo particular com uma produção quase impecável (não gosto dos cubos de recursos) que acompanha inclusive um mini livro sobre a história do jogo (os quais geralmente ignoro, mas aqui parei pra ler e valeu a pena).
Anachrony poderia ser somente mais um jogo de alocação de trabalhadores, mas acaba sendo uma experiência incrível que transforma todas suas mecânicas em elementos pra contar sua história.
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