Num universo onde são despejados mais de 2 mil títulos diferentes por ano, fica impossível ter no radar o conhecimento de todos os jogos que surgem. Em uma conversa num grupo recente, cheguei a comentar que na minha percepção, o universo dos boardgames é basicamente movido a Hype, nesse oceano vermelho de milhares de produtos competindo pela atenção de um mercado relativamente pequeno, não se destacarão somente os melhores jogos (claro que a qualidade facilita muito o trabalho de comunicação), mas primordialmente aqueles que tiverem mais "marketing", ou aqueles que caiam no gosto pessoal dos formadores de opinião que direcionam parte desse mercado para gerar a tal " Hype. Aliás o investimento em marketing é inclusive em sua maior parte uma busca pela opinião positiva de tais influenciadores. Longe disso ser uma crítica, é apenas uma leitura minha de um mercado relativamente novo que busca amadurecimento.
Por isso, vira e mexe, acredito que um ou outro título bastante interessante pode acabar não tendo a atenção que merece, sendo assim, eu sempre tento exercitar minha curiosidade, não só acompanhando o buzz, mas também me mantendo atento aos jogos que não estão sendo tão falados, peneirando alguma coisa diferente por ali.
Wendake é um desses casos, um jogo que não teve tanta hype, nem mesmo reviews dos grandes canais gringos, mas que traz muita coisa bacana principalmente nas suas mecânicas.
O tema é focado na disputa territorial de tribos indígenas da região dos grandes lagos, que abrange uma parte do norte/nordeste americano e a provincia canadense de Ontario. O jogo vem acompanhado de um handbook que explica os elementos culturais e habitos desses povos nativos e com uma produção caprichadíssima, com meeples em formatos de indiozinhos à aboboras e uma arte bem referenciada. Tudo isso ajuda a construir bem a atmosfera do tema que acho super diferente e interessante, mas a imersão no mesmo para por aí e volto a falar sobre isso depois, pois onde Wedake se torna muito interessante e merecedor de mais atenção do público, é nas suas mecânicas.

Cada jogador começa com 21 nativos sendo: 7 guerreiros (meeples dos indios), 7 caçadores e 7 mulheres(tokens) e com os atributos e recursos assimétricos de cada tribo. Assim como em Terraforming Mars, também há a opção de facções simétricas que recomendo bastante nas primeiras partidas. Pois acredito que há um desbalanceamento de certas tribos. Preciso jogar mais vezes com a assimetria mas nas partidas que fiz isso identifiquei algumas tribos com "poderes" não tão fortes quanto outras, e tal escolha pode dificultar bastante a experiência para quem ainda não tem o domínio do jogo.
5 nativos de cada tipo são alocados na área exclusiva de cada jogador e a partir daí o jogo se desevolve em 7 rounds com 4 turnos de escolhas de ação para cada jogador. E aqui meus amigos(as) eu peço a atenção dos senhores(as) pois é onde o jogo BRILHA. E começo pela mecânica de seleção de ação dele que é algo que realmente adoro, vou tentar explicar como funciona apoiada por algumas imagens

Cada jogador possui um board com 9 tiles de ações num grid de 3x3, eles tem 4 tokens para selecionar as ações sendo que um dos 4 é sempre gasto na escolha da ordem do próximo turno restando os outros 3 para a definição das ações naquele round. Essas escolhas devem ser feitas colocando o token no tile da ação que você deseja praticar, sendo que ao final das 3 ações, seus tokens devem formar uma linha, vertical ou horizontal ou diagonal. Isso por si só já força a construção de uma estratégia antes da primeira escolha daquele round, pois a partir dela você ficará limitado a algumas opções. Além disso, ao final de cada round, os tiles que você selecionou são virados (o verso dos tiles são de uma única ação, a de ritual) e todo seu grid se move pra baixo. Isso faz com que você retire temporariamente a fila debaixo dos seus tiles de ação, podendo substituir um dos que saiu com um tile de upgrade, esses não trazem ações novas, mas sim uma sequencia das que já existem em ordem mais interessante/poderosa (todas no mesmo tile) Os tiles retirados do grid podem voltar em qualquer fase de refresh, isso dá uma pitada de "Deckbuilding" nos tiles de ações que você vai acumulando durante a partida além da sensação de tornar seus rounds mais produtivos conforme o jogo se desenrola.
Os tiles trazem 11 possíveis ações (alguns trazem mais de uma ação que podem ser executadas na ordem de cima para baixo) sendo 4 dessas (máscaras, comércio, militar e ritual), formas de pontuação que são marcadas em 4 trilhas separadas, e nesse momento chegamos em mais um ponto de destaque, a PONTUAÇÃO. Apesar da inovação aqui ser um pouco menor, uma espécie de score "a lá Knizia", é mais uma carcterística peculiar do jogo que traz uma enorme rejogabilidade. As quatro trilhas são separadas em dois pares, um par fica acima do tabuleiro e outro par abaixo. Ao final do jogo a MENOR pontuação de cada par de trilhas é somada e gera o placar final. Por ser um setup aleatório a formação dos pares, o resultado muda completamente o desenho estratégico de cada partida, pois a necessidade de equilíbrio entre cada trilha de pontuação geram um desenvolvimento de interações completamente diferentes. Exemplo, se um par de trilhas é formado por Mascaras e Ritual, não adianta fazer 25 pontos em Máscaras e 0 em Ritual pois o que contará naquele par de trilhas no final do jogo será o 0. Então você passará o jogo inteiro buscando equilibrar essas duas pontuações, assim como as pontuações do outro par de trilhas (que nesse exemplo seriam Comércio e Militar)

O desenvolvimento do jogo no tabuleiro se dá basicamente em uma disputa de controle de área com produção e gerenciamento de recursos (vou forçar a barra aqui e me perdoem por isso rs, mas para ilustrar de forma rápida, funciona meio que num estilo scythe, de ter trabalhadores alocados em lugares específicos no tabuleiro para produzir determinados recursos mas com uma mecânica infinitamente mais simples de "combate" ) A movimentação dos seus nativos no tabuleiro geram ótimas escolhas pois é necessário decidir que tipo de nativo deixará em determinada região, mulheres cultivam recursos como abóbora, milho e feijões, caçadores geram castores e os guerreiros exercem controle de área e proteção os nativos citados anteriormente. A configuração dessa movimentação é basicamente o quão robusto você consegue montar seu engine de produção de recursos e pontuação. E também onde a interação do jogo acontece, pois os jogadores não só buscam configurar sua posição na mesa como também desarrumar a dos adversários em um tabuleiro modular bem apertado deixando os jogadores quase sempre a mercê de ataques adversários.
Como de costume, não vou entrar nos detalhes das regras do jogo, a idéia aqui é mais dar uma opinião geral com algumas análises específicas do que me chama atenção (por bons e maus motivos) mas posso garantir que Wendake é extremamente competente com relação as mecânicas escolhidas com destaque para seu sistema de seleção de ações. A mistura bem feita dessas mecânicas fazem do jogo um euro médio REPLETO de boas decisões e bastante desafiador estrategicamente já que sua condição de vitória obriga os jogadores a encontrarem um equilibrio ideal entre as trilhas de pontuação e ter esses dois pares de trilhas independentes valendo somente a menor de cada uma delas, faz com que o trabalho para encontrar o caminho da vitória seja árduo, tornando a partida repleta de plot twists.

Eu adoro esse jogo, no entanto Wendake traz a tona um dos questionamentos que já me peguei fazendo algumas vezes e ainda não tenho uma resposta. O quão importante é ter as mecânicas do jogo adequadas ao tema? Porque a sensação que tenho aqui, é que essa adequação não existe. Mesmo recheado de referências temáticas e uma boa vontade para incluir esses elementos no desenrolar da partida (exemplo: a possibilidade de contrair varíola sempre que executa um escambo com o homem branco) as ações e a conexão entre elas me parecem muito frágeis e aleatórias. Ok, jogos Euro clássicos tem essa característica de temas mais frouxos, até um dos designers mais cultuados (Feld) tem praticamente ausência de tema em suas obras, mas eu particularmente admiro jogos onde pelo menos de alguma forma aquela mecânica permita um mínimo de abstração. Como por exemplo o deck building da plantação das uvas em viticulture e a sua alocação dividida por estações do ano, ou as mecanicas de seleção de ações e pickup and delievery na extração de carvão e exploração das minas em haspelknetch. E ver um tema tão bacana e difícil de encontrar como o de wendake, apoiado numa produção extremamente competente, sendo desperdiçado, me dá um pouco de angústia.
O jogo funciona bem de 2 a 4 players (não testei o modo solo) pois seu tabuleiro muda de acordo com a quantidade de pessoas na mesa buscando sempre manter a disputa de territórios mais apertada possível e forçando a interação entre os jogadores.
Apesar de não ter regras complexas, o início de uma primeira partida pode intimidar bastante pela quantidade de opções, decisões e escolhas disponíveis, mas conforme os jogadores vão se habituando e entendendo melhor as inúmeras possibilidades que ele traz, a complexidade se dilui de forma bastante natural e rápida dando lugar a uma experiência bastante positiva, principalmente pra quem gosta de mergulhar de cabeça em decisões estratégicas.
Wendake não é perfeito e tem seus problemas, principalmente desperdiçando um ótimo tema com algumas escolhas aleatórias, mas traz diversão e rejogabilidade suficiente para ser por muitas vezes, um agradável desconhecido à sua mesa.
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