The Italian Job, Caçadores de emoção, Cães de Aluguel, La casa de Papel, O Plano perfeito, Onze homens e um segredo, Truque de Mestre, e tantos outros mais. As narrativas envolvendo grandes planos de assalto sempre povoou o imaginário coletivo em inúmeros, filmes, livros e séries. E não seria diferente em um universo tão abrangente de temas como o dos board games.
O tema não é novidade, mas quem se apropria dele e de que jeito, é o que me faz vir até aqui. E mais do que isso, a discussão do que torna um jogo temático e como isso afeta a experiência de uma partida é um dos pontos que Escape Plan levantou pra mim.
Precisamos falar sobre Vital!
Se tem um cara que não passa desapercebido no Hobbie, esse cara se chama Vital Lacerda. Alguns amam, outros odeiam, mas o fato é que Vital conseguiu num universo gigantesco de títulos e designers, desenvolver uma personalidade própria para os seus jogos que são geralmente marcados por um excesso de regras e complexidade e também por apresentarem muitos caminhos de pontos e vitória, Além disso, Vital sempre demonstrou uma enorme preocupação temática em seus jogos, desde seu primogênito Vinhos. Preocupação essa que não passa incólume por quem se aventura em suas experiências.
Posso garantir que os temas estão lá, as conexões entre mecânicas e componentes são costuradas por uma lógica que faz sentido dentro do universo e ambientação que seus jogos se propõem, no entanto, a complexidade e quantidade de regras geralmente causam um peso grande demais, prejudicando os jogadores no seu exercício lúdico de abstração e fazendo os se entregar aos puxados exercícios matemáticos e de raciocínio lógico que as partidas impõem. Em resumo, os temas são bem implementados, mas não sustentam o peso do jogo.
Vital no entanto parece querer evoluir, e ao longo de seus lançamentos tem demonstrado uma preocupação em tentar "simplificar" seus jogos mas sem perder sua assinatura e personalidade que estão atreladas ao peso. O próprio Vinhos ganhou uma versão Deluxe 6 anos depois e vem com um manual diferente e mais streamlined para ser mais facilmente "degustado". `Podendo ser aprendido e jogado de duas formas diferentes (versão 2010 e versão 2016). O mesmo aconteceu para CO²
Em Lisboa Vital alcança seu ponto ótimo talvez, e o próprio autor brinca com sua criação dizendo que o jogo se resume em "jogar uma carta, fazer uma ação e comprar outra carta", quem jogou sabe que Lisboa apresenta muitas camadas de profundidade além desse resumo simplificado, mas de fato Vital conseguiu ali uma "refinamento" em busca de uma elegância de regras que lhe era possível. O Tema ainda sofre um pouquinho mas já consegue se sustentar melhor que seus antecessores, e aí temos Escape Plan.
Mova-se ou descanse
Se Lisboa era resumido em 3 tempos (Jogue uma carta, faça ação, compre uma carta). Escape Plan se resume em dois. Mova seu meeple ou descanse. Isso pelo manual de regras, pois se for para falar em termos práticos, Escape Plan é basicamente um jogo sobre movimentar-se taticamente no tabuleiro. Provavelmente você utilizará a ação de descansar uma vez na partida ou nenhuma.
Sem dúvida nenhuma estamos falando do jogo mais "leve" do designer até aqui. E como forças diametralmente opostas que sempre foram em toda sua obra, ao diminuir o peso, o tema acabou se destacando mais.
Em Escape Plan os jogadores encarnam um grupo que acabou de fazer um grande assalto a banco e começam a sofrer a pressão do cerco fechando sobre eles. Por conta disso, tem 3 dias para recuperar o máximo de grana e conseguir escapar da cidade com a maior quantidade de dinheiro possível, lembrando que se você não conseguir escapar durante o terceiro dia automaticamente é preso e perde o jogo.
No início do jogo cada um recebe uma carta secreta com um Plano de Fuga, nela estão as localidades (bar, cassino, discoteca, etc...) onde você será capaz de recuperar uma quantia do assalto (que servirá como pontos de vitória) ou receber uma grana imediata para ajudar na execução da sua rota. Falando dessa forma parece que teremos um bom jogo estratégico pela frente, no entanto a construção dessa cidade se dá ao longo do jogo pelos próprios jogadores, e como não existe uma história de grandes assaltos e planos mirabolantes sem improviso, aqui você terá que se adaptar o tempo todo para conseguir por seu plano em prática da melhor forma.
Tensão, excitação e drama na mesa
O simples fato de serem somente 3 dias (ou rounds), divididos em a principio 3 turnos cada, já coloca pressão suficiente nas escolhas dos jogadores. Some isso aos fatos de ter cada vez menos recursos, não saber ao certo como a cidade irá se revelar e sua movimentação se tornar cada vez mais difícil por conta dos policiais que vão se espalhando pela cidade e indo atrás de você cada vez que sua notoriedade aumenta. Escape plan constrói uma história recheada de tensão a cada partida.
Tensão essa que começa na fase de tile placement, ou construção da cidade pelos jogadores. Em ordem de turno cada um escolhe um tile disponível e coloca no tabuleiro, porém, muitos desses tiles vem com a possibilidade de você adicionar uma localidade a sua escolha nele. Esse primeiro grande momento de decisão no jogo já é capaz de gerar mudanças de rotas em seu planejamento antes mesmo da partida começar, pois além do lugar que você planejava visitar poder ficar distante e custoso para sua visita, cada localidade dessa tem um limite bem reduzido de visitas por partida, ficando fechada após 2 ou 3 jogadores terem passado por lá.
Os jogadores tem 3 pontos de movimentação que são limitadas pelas áreas que se conectam (não pelos tiles) havendo regras especiais como utilização do metrô, helicoptero e ferry boat. No entanto, para cada tile que saem ou atravessam, eles precisam evitar os policiais que lá se encontram caso não queiram levar bala. Para isso você precisa de recursos e contatos que consegue visitantdo certas localidades como lojas de conveniência, safe houses, igreja, etc...
É realmente muito bacana o jeito que Vital projetou a mecânica de movimentação e interações com os terrenos/localidades especiais, onde é preciso uma camada de planejamento para fazer o movimento para um local enquanto gerencia seu dinheiro e seu plano de longo prazo de fuga. Sabendo que você muitas vezes terá que improvisar por conta de como o estado do tabuleiro muda devido a outros jogadores. E antes que me esqueça de dizer, das 3 saídas possíveis do jogo somente uma estrá disponível para a fuga no final e você só descobrirá qual no último dia. Portanto, esteja preparado para se movimentar sem aproveitando o máximo dos seus turnos no último round do jogo. Porque o terceiro dia meus amigos é um CAPÍTULO A PARTE.
"Maximize-se" mas seja discreto
Mas antes de entrar nele vale ressaltar um elemento do jogo que é o nível de notoriedade. Conforme promove encontros do seu grupo, deixa rastros e evidências para trás, utiliza gangues e contatos você vai chamando atenção para si e ganhando estrelinhas de notoriedade (quem ja jogou GTA vai visualizar facilmente isso) assim como ir na igreja, em safe houses etc... diminui essa quantidade de estrelas, entre turnos o saldo é adicionado a sua trilha de notoriedade e dependendo do quão avance pode atrair os policiais em sua direção dificultando sua movimentação. Essa movimentação policial se dá por quem está passando mais desapercebido que você, em uma interação direta entre os jogadores. Essa mecânica cai como uma luva para passar a sensação que agora é cada um por si, e todos preocupados somente com sua fuga. Entretanto ficar em evidência também libera alguns recursos e gerenciar essa notoriedade é mais uma camada de decisão fundamental em Escape Plan.
Terceiro dia o Grand Finale
Conforme mencionei anteriormente, à medida que o jogo chega ao seu final, 2 dos 3 locais da saída da cidade serão fechados e você terá uma única saída posível. E dependendo de onde você está no início do terceiro dia e como você está equipado para lidar com tudo em seu caminho e nessa saída, você conseguirá ou terá todo seu esforço desperdiçado em vão sendo preso pela polícia. A tensão aqui aumenta para alguns jogadores, a mesa repentinamente fica mais concentrada e tensa, com todos focando em um único objetivo: como maximizar esses últimos turnos e escapar. Você precisa sair da cidade para se qualificar para a pontuação final. E caso você não consiga, as algemas fecham, e enquanto você vê seus ex-parceiros no crime partirem à distância tudo que lhe restará é ver cabisbaixo a contagem final do dinheiro dos outros jogadores.
Muita gente se incomoda com fatores de condição de vitória como acontece aqui, em gugong ou até mesmo em clank, mas jogos como esse forçam a idéia de o que vale muitas vezes em uma partida é a jornada, a partida em si e não o resultado.
E essa é a grande entrega de Escape Plan pra mim. A Diferença gritante entre as partidas e a experiência que elas proporcionam dão o enorme fator de rejogabilidade para o título. Para elevar essa sensação, tento sempre combinar com a mesa para não haver refação de jogada, além de ser chata de "rebobinar" o risco de de um movimento mal calculado aumenta a tensão e excitação do jogo, mesmo que gere um pouco mais de downtime.
É nessa sensação da experiência que Vital amarra o tema em Escape Plan, A necessidade do improviso em situações cada vez mais adversas para executar da melhor forma possivel sua estratégia é o que crescemos assistindo nas narrativas de grandes assaltos e planos mirabolantes. Você sente que tem pouco tempo para fazer tudo o que deseja, sente o risco e as escolhas difíceis por trás de cada decisão. Independentemente do desprazer que você pode obter deste jogo sendo preso no final, você absolutamente se sente envolvido até o último movimento. E isso contrapõe a determinadas escolhas que trazem algumas de minhas críticas.
Não existe plano (nem jogo) perfeito
Apesar da arte MARAVILHOSA e funcional de Ian O´Toole, Vital ainda precisa soltar mais a cintura em determinadas escolhas. Falta muito flavour aos componentes de Escape Plan e apesar de entregar uma boa experiência recheada de tensão algumas de suas mecênicas facilitam a viagem ao mundo meramente lógico / matemático para jogadores com mais dificulade de imersão e abstração. Os poderes das cartas de contato até fazem sentido, (por exemplo Bribe afasta um policial para outr tile) mas ainda assim são secos e genéricos demais o mesmo para os poderes das gangues e seus meeples bacanas de choppers.
Algumas mecânicas também descolam um pouco do tema como uma pontuação final por set collection dos contatos, ou os tiles de recurso no playboard dos jogadores, e outros pormenores, mas no geral o jogo é muito bem amarrado.
A melhor contagem do jogo fica entre 3 e 4 jogadores, a partida para 2 adiciona um dummy player (a famosa Sandra) que ao menos para mim é um recurso que sempre incomoda bastante. Ainda assim, Sandra funciona bem e de forma simples e rápida, mas sempre acho um sistema de IA um downgrade para o jogo. Já com 5 jogadores não tive a oportunidade de jogar, mas tenho receio de deixar a partida caótica demais principalmente pelo fato das localidades fecharem após uma quantidade de visitas.
Conclusão
Escape Plan chegou e foi pra mesa no primeiro dia e lá ficou por pelo menos 4 dias tendo partidas disputadas em todos eles. E já tem mais duas sessões de jogos marcadas para essa semana, isso mostra duas coisas: o quanto gostei do jogo e o fator excepcional de rejogabilidade do título. Vou ficar devendo minhas percepções sobre duas expansões que vieram com o KS que são as cartas de missão e os poderes variáveis dos jogadores, por jogar quase sempre com pelo menos uma pessoa nova no jogo nas mesas, optei por não colocá-las. Mas assim utilizá-las faço um update aqui.
A primeira partida de Escape Plan pode ser um pouco confusa e frustrante para alguns jogadores. Como o jogo requer constantes mudanças de planos em turnos que precisam ser otimizados, a experiência e resultado ficam melhores com um domínio maior das regras e conhecimento do que é possível fazer em cada localidade. Apesar desse ser o jogo mais leve do Vital, há muitas camadas de profundidade estratégica, principalmente tensão na tomada de decisões que é o centro nervoso do jogo.
O tema se adequa ao jogo como resultado final do conjunto de mecânicas (algumas com bastante sentido, outras nem tanto) e primordialmente pela tensão da experiência que proporciona. Mas tem como principal entrega a construção de uma narrativa diferente a cada partida, de um jeito bem acima da média de jogos Euro. Vital conseguiu com Escape Plan fazer um jogo divertido e mais acessível que o restante de seu portfólio, mas Escape Plan continua sendo uma "Experiência Lacerda", precisa, mesmo mais leve, ser digerido e fica melhor a cada partida. Não sei se é o melhor jogo do designer, provavelmente não, mas sem dúvida é o mais diferente, divertido e acessível. Se tiverem a oportunidade não deixem de conhecer e se possível joguem duas partidas consecutivas, por incrível que pareça, se tratando de Vital, esse é um jogo que permite isso.

*****************************************************************************************************************************************************************************************************
O Área 21 BG é um canal que ainda está engatinhando e aprendendo como contribuir com o hobbie, a idéia é sempre tentar focar em jogos menos falados, os que ainda não chegaram por aqui ou versões diferentes. Para acompanhar futuras resenhas é só se inscrever no canal aqui da ludopedia, e se quiserem saber o que tem visto mesa segue lá no instagram @area21_bg
Outras análises do Canal
Calimala - O Italiano com cara de alemão
Anachrony - O Worker Placement Gourmet
Everdell - Só mais uma árvore bonitinha na mesa?
Dinosaur Island - Um Euro que valoriza mais o tema que as mecânicas
Wendake - Programa de índio ou ilustre desconhecido?
Endeavor - A referência de elegância nos Board Games
Carpe Diem - Aproveite o dia e faça pontos
Arquitetos do Reino Ocidental - Inovar é suficiente?
Ceylon - Um jogo sobre Chá, Timing e Escolhas