Introdução:
Eu poderia começar dizendo que Bios Origins é um excelente jogo "Civ" mas olhando pro portfolio dos títulos que se enquadram nesse segmento, seria um grande equivoco rotulá-lo dessa forma. Tirando raras exceções como Through the Ages, quase nenhum desses "civgames" trazem de forma efetiva a experiência de controle e/ou observação do progresso de uma sociedade.
Bios Origins até traz recursos ordinários a essa família civ como: trilhas de tecnologias, construção de cidades e expansão territorial, mas isso é apenas parte de um todo e não os mecanismos centrais nos quais o tema de civilização é "colado". A jornada aqui vai além e constrói durante uma partida os caminhos conflitantes pelos quais diferentes povos percorrem através das épocas. Uma progressão onde são necessárias redefinições de valores, mudanças ideológicas e reavaliações de objetivos.
Um desenvolvimento agrícola não acompanhado de uma evolução imunológica pode expor uma sociedade a zoonoses, assim como uma urbanização mais acelerada que a agricultura traz consequências como escassez de comida e consequentemente fome. Em Bios Origins não basta correr com seus cubinhos em uma trilha de evolução pois o progresso desequilibrado traz ameaças constantes. Muito mais que um Civgame, Bios Origins é um jogo SOBRE civilização.
A saga Bios em seu melhor recorte
Escrever sobre os jogos do Phil (e matt) Eklund (principalmente os mais pesados como Origins e High Frontier) é um exercício extremamente empolgante pois tira, de forma incisiva, qualquer pretensão de falar detalhadamente sobre as regras do jogo ou explicar em minúncias objetivas como o jogo é jogado (até porque reviews não deveriam mesmo fazer a vez de manuais) a leitura de seus complexos e multi referenciados livros de regras e o processo de aprendizagem desses jogos é um episódio a parte que apesar de desafiador é por muitas vezes recompensante e enriquecedor.
Só de setup são uns 7 jeitos diferentes que irão desdobrar variantes de regras, isso porque Bios Origins faz parte de uma série de jogos que começam no Bios Genêsis, passa pelo Bios Megafauna e tem como sequência o épico High Frontier. E caso os jogadores queiram encarara essa jornada evolutiva, a série de jogos permite encadear os resultados da partida de um, no setup e regras do seu subsequente, construindo uma história que vai desde a formação das primeiras formas celulares de vida até a conquista definitiva do espaço.
Mas o jogo permite partidas individuais que não diminuem em nada a experiência dos jogadores que querem vivenciar o alvorecer das civilizações e organizações sociais de indivíduos. Ainda assim, é preciso esclarecer que apesar de se tornar absurdamente intuitivo após uma primeira partida, a compreensão perfeita das regras é sem dúvida uma etapa que requer um pouco de dedicação.
Conflitos ideológicos
A primeira grande característica que fez esse jogo explodir minha cabeça, é que apesar de haver uma espécie de contagem de pontos no fim, não há a sensação na partida que os jogadores estão competindo por simples pontos de vitória, mas sim por uma imposição ideológica. Ao final do jogo você será avaliado pela ideologia que melhor te define. Pelos valores mais intrínsecos da sua civilização, apesar de que (como já citei anteriormente) seus caminhos necessitarão de um equilíbrio entre todos esses alinhamentos.
Investir numa civilização pautada pela fé, necessita de uma classe sacerdotal influente para permitir que se espalhe pelo mundo convertendo povos e cidades através das idéias sem gerar dissidentes rebeldes. Um caminho pautado na urbanização é menos paciente e conduz sua cruzada através da escravidão dos seus inimigos que passam a contestar o sistema que os regia podendo gerar revoluções caóticas. Ambos no entanto tentarão não ficar para trás nos caminhos que lhe são opostos, buscando o balanço de trilhas não paralelas que geram uma interação lógica e pertinente a estratégia de cada jogador. Ao passo que uma ideologia vai se tornando dominante e se enraizando no status quo da humanidade, poderemos ver civilizações jogando fora todos os principios básicos que lhes serviram de norte até o momento para competir na mesma frente evolutiva, ou até mesmo influenciar a filosofia global que rege valores comuns universais inviabilizando determinadas culturas. Em um mundo humanista por exemplo, o caminho da fé se torna ineficiente. E as nuances desses valores irá afetar o resultado final da partida. O processo de construção e influência nas condições de vitória é marca registrada dos jogos de Eklund e aqui não é diferente, acontecendo em uma simbiose perfeita com o tema.

Uma construção lógica de causa e consequência
Tudo isso parece uma descrição lírica do jogo mas é a tradução de suas regras, suas possibilidades e sua jogabilidade. Bios Origins traz esse nível de decisões através de suas mecânicas e constrói a experiência de civilização através dessas interações. Regras simples e isoladas compõe uma lógica intrincada de causa e efeito, jamais ficando perdidas pelo caminho. A ação de domesticar parece simplesmente colocar um token de civilização num icone de animal, mas qual seria a diferença entre domesticar cavalos ou coalas? Mais a frente percebe-se que animais de guerra (como os cavalos) facilitam na mobilidade e consequentemente enfrentamentos. Regras de movimentação pelo mapa demonstram que atravessar florestas exigem pré requisitos de avanço evolutivo diferentes dos necessários para superar a travessia de desertos. A destruição de cidades por eventos naturais (ou pela mão de "Deus") não geram caos ao contrário dos atos humanos como matar um ancião ou sitiar e dominar uma localidade. Com tanta coisa acontecendo simultaneamente, o surpreendente é como Eklund e Manker compactaram todos esses conceitos em um sistema simplificado. Apesar de pesado, todas as peças se encaixam perfeitamente. O ponto é que ao ir jogando Bios Origins o que parecia um excesso de regras vai se tornando um exercício lógico e intuitivo de causa e consequência nesse simulador de civilzação.

A revolução cognitiva como pré requisito de nossa dominância
Para sustentar essa progressão o jogo se apoia em 2 baralhos. Um de idéias e o outro de fundações (ou valores civilizatórios). Idéias e fundações são apresentadas sob 3 aspectos difirentes (político, cultural ou industrial) que também podem ser definidos como um alinhamento que servirá de pilar para sua evolução. Essas 3 esferas formam colunas no playerboard do jogador e ao adquirir idéias e fundações os jogadores vão ampliando a quantidade de ações possíveis em seu turno. As cartas possuem sempre duas possibilidades de alinhamento e o jogador precisa colocá-las na esfera correspondente. A ressalva é que sua civilização só pode utilizar uma única coluna por vez, ou seja, ter uma esfera dominante. Elas não são engessadas a ponto de você ser travado em um único alinhamento e ficar com uma civilização industrial em vez de política por toda uma partida por exemplo, mas existem tendências a serem observadas, como a cultura favorecendo a religião ou a indústria eventualmente gerando ciência. A sacada é que, embora os cartões de valores (fundações) durem praticamente para sempre, as ideias desaparecem sempre que você atinge um determinado limite ou se tornam obsoletas. Idéias também tem uma mobilidade maior de esferas, a domesticação de cachorros por exemplo, sob uma perspectiva cultural, é uma idéia que ajuda no controle de outros animais por exemplo, mas se for aplicada de forma política, lhe ajuda no processo beligerante de escravidão (cães de guerra). Essa mudança de esfera no entanto, se dá somente através de revoluções, episódios que redirecionam os valores de uma sociedade de forma programada ou impostos de forma caótica.
O Jogo é dividido em 4 épocas representadas em um desses baralhos, que funciona como uma espécie de relógio controlado pelos jogadores e o arco dessa evolução temporal é magistralmente amarrado no sistema de progressão do jogo. O início de Bios Origins é extremamente travado, escasso de ações e até mesmo de possibilidades para ampliar sua capacidade de turno pela impossibilidade cognitiva das subespécies dos jogadores, capacidade essa que representa uma forma de "economia"do jogo. Um dos playerboards dos jogadores é a representação do cérebro humano com tokens divididos de forma desigual em 3 segmentos. Emoções / Vocabulários / Livre arbítrio . Apenas os tokens de livre arbítrio, que representam os indíviduos racionais são capazes de desenvolver o pensamento de novas idéias, (mecanicamente, de prospecta-las no mercado disponivel) e você só começa com um indivíduo desse. No entanto, para que uma idéia se torne uma invencão, é necessário que sua espécie tenha desenvolvido vocabulário suficiente para transmitir aqueles novos conceitos ao seu povo. Ou seja, liberando mais individuos meramente instintivos (tokens travados no segmento de emoções) para indivíduos com uma capacidade suficiente de comunicação que faça perpetuar novas idéias desenvolvendo o portfólio de ações desponíveis.
Dessa forma, observamos que no início de uma partida de Origins temos fundamentalmente os jogadores buscando uma evolução cognitiva, desenvolvendo seus cérebros. Mais tarde cidades começam a surgir ao redor de recursos que você aprendeu a cultivar, domesticar ou minerar nesse meio tempo, e consequentemente conflitos territoriais e imposições culturais passam a eclodir quando os migrantes de espécies diferentes começam a se esbarrar mundo afora.
Apesar de parecer um ambiente controlado, o jogo também traz uma certa dose de aleatoriedade representada na fase de desafio dos deuses, que basicamente é o avanço no relógio do jogo. Eventos repletos de caoticidade podem mudar completamente o rumo das coisas porém, uma vez conhecendo as mazelas que o progresso humano é capaz de trazer e os lugares (representados no mapa) onde a natureza é instável, toda a aleatoriedade pode ser mitigada.
Conclusão
Bios é um dos melhores exemplos de um jogo desenvolvido para simular um tema, e quando falamos de civgames o que temos 90% das vezes é o tema simplesmente ilustrando um conjunto aleatório de mecânicas que geralmente desembocam em progressão em "árvores" de tecnologia.
Parafraseando uma definição muito boa que li certa vez sobre o Origins,
"Este é um jogo sobre como as culturas podem ser sequestradas ou realinhadas. Sobre uma espécie em ascensão. Este é um jogo sobre humanos. Para o bem ou para o mal, Origins é sobre nós."
Golden Elephant:
Bios Origins se junta a
Pax Pamir,
Pipeline,
Barrage,
Pax Transhumanity e City of Big Shoulders na lista dos indicados ao Golden Elephant, um prêmio de jogos pesados desenvolvido pelo pessoal do HeavyCard board e que pro meu gosto acaba sendo o mais relevante award dessa indústria. Essa lista somada a tantos outros jogos incríveis lançados em 2019 mostram o quão inesquecível o ano passado foi para o mercado de Boardgames. Todos foram analisados aqui pelo
Área 21 (reviews nos links nos nomes dos jogos) menos CoBS que teve excelentes análises do
The Meeple Kingdom pelo @
butilheiro e
Red Meeple pelo @
Lpporto
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