Um dos aspectos mais interessantes do mundo dos jogos de tabuleiro, é ir, aos poucos, moldando seu perfil. No início, você parece empolgar com qualquer coisa e se vê perdido no meio de 180 mil jogos lançados onde todos parecem ser essenciais e imperdíveis para sua coleção. No início do hobby eu tinha todas as versões de Munchkin que existe. Também comprei Máfia de Cuba e Mysterium só por que estava barato.
Um dos primeiros jogos que me impactaram então, foi Aquasphere do Stephan Feld. Ali eu vi que euro era meu estilo. A partir do momento que joguei Aquasphere eu virei Feldete e passei a comprar absolutamente tudo dele. Ficava angustiado que alguns jogos estavam esgotados. Arrumei um amigo pra comprar um Bruges pra mim, num sebo no Canadá, e só pra garantir, paguei 2 pessoas pra trazer Merlin de Essen pra mim. E foi justamente Merlin o outro jogo que mudou minha vida. Foi ali que eu vi que eu precisava de algo a mais que um euro médio. Que era ótimo jogar a maquininha de pontos inicialmente mas depois de algumas partidas eu cansava e só ficaria com o jogo se ele fosse, pra mim, a referência e o melhor daquela mecânica. Bora Bora, Russian Railroads e Burgundy por exemplo, ficaram na coleção. O resto, quase todo saiu e fiquei um pouco desgostoso com jogos euro-médios novos, até que veio Brass. Brass foi o jogo que me mostrou o caminho que eu precisava seguir: euros com interação. Graças ao Brass eu passei a buscar outros jogos antigos do Martin Wallace pois eu simplesmente queria jogar mais clássicos de um autor que fez algo tão bom e acabei encontrando London, outro jogo que figura dentre meus favoritos. Foi com surpresa então, que depois de passar anos falando que jogos com Mercado de Ações não é minha praia(eu havia jogado Panamax, Chicago Express, entre outros) que eu me apaixonei por City of The Big Shoulders, ou Chicago 1875 como chama a versão européia da Quined.

City of The Big Shoulders é um jogo econômico, pesado, que tenta entregar, de forma bem mais eurogamer e simplificada, a experiência de jogar um jogo do estilo 18XX. Para quem não conhece, 18XX são uma série de jogos sobre construção de rotas de trem nos EUA no século XIX, onde os jogadores são investidores de companhias ferroviárias. Eles compram trens, constroem rotas e operam a companhia de forma a maximizar seu lucro e distribuir o máximo de dividendos para si próprio. Um conceito muito interessante desse tipo de jogo é que você não é a companhia no jogo, você é um investidor. que pode ter participação ou até controlar várias companhias. Se você ver potencial na companhia do seu adversário, você pode comprar ações dela para lucrar na aba dele, ou até mesmo comprar tantas ações que você toma o controle do cara e passa então, você mesmo, a operá-la. Quem já jogou Imperial 2030, lançado no Brasil pela Pensamento Coletivo, talvez entenda melhor esse conceito.
Uma coisa interessante, nessa dinâmica é que existe o dinheiro da empresa e o seu dinheiro de jogador. E embora seja o dinheiro da empresa que lhe dá possibilidade de aumentar seu valor e o quanto ela te faz lucrar, é o seu dinheiro que vence o jogo, não importanto se a empresa no final está rica ou pobre. Ou seja, durante o jogo você precisa que a empresa tenha grana para operar bem ao mesmo tempo que você também precisa tirar dinheiro dela e transferir para você para que você consiga ganhar o jogo. Então, ao comprar ações da empresa, você está injetando dinheiro nela. Com esse dinheiro ela vai poder operar. No caso do 18XX vai comprar trens, cumprir rotas e fazer mais dinheiro com isso. Esse dinheiro que ela faz, é então distribuido entre os jogadores acionistas como dividendos, ficando para própria empresa, os dividendos das ações que ainda não foram vendidas.
Durante a partida então, o que você quer fazer é, por dinheiro em companhias com potencial de operar com lucro, ganhar grana com dividendos dela para comprar mais ações que irão gerar mais dividendos, e ganhar duplamente, também com a valorização das ações, podendo depois vender as ações na alta para sair com lucro lá em cima. E por que isso nunca foi minha praia?
Bem, os 18XX eram jogos que me pareciam complexos demais. Partidas de 5 a 6 horas (quando cogitei jogar, assiti uma partida que durou 16 horas e me fez desistir de vez) onde você tinha que saber exatamente o ponto ótimo de vender e comprar ação, operar bem, e, as vezes até quebrar a sua propria empresa por perceber que algum adversário lucraria mais que você nela, para então sair da empresa e deixar o pepino na mão do cara e por aí vai. Parecia trabalhoso demais para mim. Nunca quis me meter nisso não, afinal, o que eu curtia em jogos era ter minha empresa, e quem operar melhor até o final ganha. Pode isso?
E foi aí que veio City of the Big Shoulders. O conceito é exatamente esse que passei acima, só que com produção de bens ao invés de expansão da malha ferroviária americana nos anos 1800s. Ao invés de comprar trens, a gente compra recursos para produzir bens e entregar a uma demanda, num sistema muito parecido com o do Arkwrigth, outro jogo econômico que eu passava longe. Mas a primeira coisa que o Big Shoulders mudou foi a condição de final de jogo. Enquanto nos 18xx que eu conheço, a condição é quebrar o banco, ou seja, fazer tanto dinheiro que acaba o dinheiro que vem no jogo, no Big Shoulders são 5 rodadas, o que limita o tempo de jogo a aproximadamente 3 horas(talvez um pouco mais na 1a partida).
Além disso, ele implementou uma alocação de trabalhadores na fase onde você opera a empresa que é muito bacana e ao mesmo tempo me remete a uma mecânica que já me é familiar. A cada rodada, cada jogador recebe 3 tiles de alocação e escolhe 1 para colocar no tabuleiro. Aquele espaço então estará disponível para todo mundo alocar seu trabalhador. Ou seja, cada jogo, os espaços disponíveis serão diferentes. Mas não para por aí. Cada espaço tem um custo em grana, que, para usar, a empresa precisa pagar ao jogador que disponibilizou o tile ao jogo. Ou seja, se a empresa do adversário vai ali, você, jogador, ganha dinheiro. E como quem ganha o jogo é o jogador (não a empresa) que tem mais grana, muitas vezes você coloca um tile apenas para ser uma fonte de grana (que equivale a ponto de vitória no jogo) para você na partida. Nem que seja para você mesmo ir lá transferir grana da sua empresa para você.
Talvez para quem está no mundo dos 18XX pesadões o Big Shoulders tenha simplificado demais alguns conceitos. Talvez o mercado de ações flutue muito pouco e com isso ações caem pouco e tenha pouca especulação. E talvez o jogo tenha pouca venda e um pouco mais só de compra de ações na partida. Talvez Big Shoulders tenha virardo um jogo onde gerir melhor a empresa tem mais importância do de que saber manipular bem o mercado de ações, mas, para mim, que não venho desse mundo dos 18XXs , o grau de simplificação que o jogo teve caiu como uma luva e foi o que quebrou a barreira que eu tinha para testá-lo. F
oi como o Root me colocando no mundo dos Wargames COIN. Eu senti o gostinho da coisa, visualizei todo potencial que existe ali e isso mudou a maneira com que eu via jogos econômicos dali para frente.

No dia seguinte a minha partida com a versão Print-and-Play (foto acima) de Big Shoulders (que aconteceu na véspera do Reveillon) eu já estava marcando uma outra de Arkwright, que até então eu fugia como vampiro da cruz. E antes do final da mesma semana, eu estava oferecendo pagar um ágio na cópia que o David Coelho tinha parada na estante sem ver mesa desde a GenCon. E quanto ele aceitou vender, eu mandei um Rappi buscar a cópia na casa dele pra gente por na mesa na mesma hora. E a empolgação nesta semana foi tamanha que eu, no mesmo dia, comecei a ver vídeo de regra do 1846 que é um jogo que eu não tenho e nem sequer sei quem tenha aqui. Mas eu simplesmente precisava de mais dessas drogas.
Agora estou aqui discutindo com minha esposa que eu PRECISO de um conjunto de 400 fichas de poker da Roxley (a mesma do Brass e que custa tipo 130 dólares + frete) pois diz a lenda (e eu a repito), que esse tipo de jogo pesado se ganha até 1 hora de partida trocando o dinheiro de papel por fichas. Tenho certeza que decorar o quarto da criança pode ficar pro próximo ano.
Chicago 1875: The City of the Big Shoulders ainda não é, apersar de todo entusiasmo, o jogo da minha vida. Mas, quando se está no hobby há algum tempo, cada vez menos você tem esse tipo de empolgação com um jogo. As vezes, não é nem o jogo em si, mas em tudo o que você descobre que está por vir depois dele. Me lembra aquela sensação de jogar e descobrir o mundo dos jogos modernos que eu tive em 2002 jogando Catan e abrir a porta para um admirável mundo novo. Aquela coisa de "Gente, isso existe e eu não sabia???" sabe?. Sensação essa que, quem já experimentou jogos como Arkwright e os 18xx, dificilmente sentir como eu, afinal não há a sensação de descoberta. Também tenho que avisar que, embora não seja nenhum jogo com regras pesadas de outro mundo (acho mais tranquilo que Feudum e jogos do Vital Lacerda por exemplo), é recomendável que você já tenha jogado e curtido no mínimo Brass para se aventurar nessa brincadeira.
Agora, para as demais pessoas, que começaram a pouco tempo no hobby desses jogos mais pesados. Que já tenha jogado e curtido, jogos como Brass, Panamax ou Barrage, acho que Big Shoulders é o próximo jogo que você está esperando para surgir na sua coleção. O grau de complexidade, interação e desafio era exatamente o que eu estava buscando nesse momento. Então, por isso mesmo, eu preciso pedir licença e terminar esse post, pois ainda tenho um 1846 para aprender antes de descobrir onde posso jogá-lo.
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PS: Big Shoulders ficou em 6o na minha lista de melhores do ano, em grande parte por que fiz a lista após apenas 1 partida no dia 30 de dezembro e não quis me empolgar demais com a 1a experiência. Atualmente, ele ficaria, no mínimo em 4o lugar, a frente do Pipeline, mas não duvido que ele possa brigar até pela 2a posição ali.