O cenário especulativo dá lugar ao período histórico
A série Pax sempre pôde ser encarada como uma lupa em um recorte preciso de um período histórico, integrando o tema com mecanismos intricados e criando uma experiência muito além do jogo em si. O papel, sempre de intermediários, que os jogadores assumem, permite a quem desejar, uma observação e aprendizado sobre os personagens e acontecimentos que os jogos trazem, revelando peculiaridades históricas de maneira lúdica e interessante.
Em uma série onde o tema por muitas vezes dita as regras para que as costuras históricas durante uma partida tenham lógica e façam sentido, Pax Transhumanity inova justamente na perspectiva que traz. Pela primeira vez, trocaremos um cenário histórico por um especulativo.
Em Pax Transhumanity, os jogadores assumem o papel de empreendedores, financiando e desenvolvendo ideias que influenciarão a evolução da humanidade. Para isso é preciso uma gestão financeira competente, recrutamento de mão de obra especializada e compreensão de diferentes esferas econômicas e suas possíveis barreiras para saber o lugar mais oportuno de fundar suas empresas disruptivas.
O Mercado mais estável (e dinâmico) da série PAX
As idéias em questão são representadas pelas cartas, marca registrada da série, e é através desses componentes que a história de cada partida (e a construção do futuro da humanidade) é contada. Apesar da mudança de perspectiva para um cenário especulativo, a experiência do universo pax mantém-se íntegra. As cartas não somente contam uma história como trazem impactos relevantes na dinâmica do jogo sempre dentro de uma lógica temática. Um “salário mínimo universal” ajuda a resolver o problema de privação de direitos, mas gera um desafio para as economias governamentais, a “democracia direta” reduz a imobilidade social dando voz igual aos indivíduos mas pode gerar problemas coletivos para grupos minoritários e se tornar uma ditadura das maiorias, a “Agricultura Vertical” ajuda a resolver a fome, uma moeda peer-to-peer praticamente elimina o dinheiro sujo que precisa ser lavado mas pode gerar oligarquias. Mesmo sem a História pra recorrer, há muito a ser explorado tematicamente nas cartas de Transhumanity.
E também, é principalmente através dessas cartas que se dá a dinâmica do jogo (como de toda série) compondo um quebra cabeça intelectual extremamente interessante. O primeiro passo para transformar um conceito em realidade é sindicar (investigar) aquela idéia, disponibilizando agentes para tal, algo que muitas vezes fornece vantagens mas que também diminui seu capital de investimento. Essas cartas estão disponíveis em quatro esferas que representam um espaço de reflexão diferente, onde você pode descobrir novas idéias, formar empresas, empregar talentos, resolver problemas e obter patentes lucrativas. No início do jogo, apenas duas dessas esferas estão totalmente abertas. O Primeiro Mundo (ou países desenvolvidos) não tem muitas barreiras mas também oferece menos vagas para emprego ou incorporação. Enquanto isso, o mundo em desenvolvimento tem uma série de barreiras e problemas, mas também oferecem oportunidades adicionais. Melhor ainda, dependendo do regime global, qualquer trabalho lá é "subsidiado" e, portanto, custa menos. As duas esferas finais, a Nuvem e o Espaço, começam inexploradas, mas podem se tornar terreno fértil em pouco tempo
Em termos de mecânicas a principal diferença de Transhumanity para os outros jogos da série, está no dinamismo do seu mercado e é uma diferença muito significativa. O fluxo desse mercado de cartas (personagens, idéias, acontecimentos, alianças, etc..) é a assinatura de mecânica da série, que na maioria de seus jogos, tem uma velocidade de renovação tão acelerada que dificulta para muitos o planejamento a longo prazo. No caso de Transhumanity esse mercado é bem mais estável, e sua movimentação é completamente associada as ações e necessidades dos jogadores. Não basta que uma idéia seja comercializada para que o mercado se renove, é preciso que alguém force uma ação de pesquisa para tanto, e pode ter certeza que as idéias que estão disponíveis, levarão bastante tempo para ir a algum lugar e quase tudo irá se resumir à forma como os jogadores as manipulam.
Um sobrevôo rápido sobre a dinâmica de Transhumanity
A gestão financeira é a mesma de seu antecessor, Pax Emancipation. Ou seja, você vai gerir agentes que produzem recursos financeiros e não o dinheiro em si. Uma escolha que me agrada muito no design do jogo, que opta por um motor de economia mais dinâmico. Em vez de fornecer uma recompensa estática consistindo em uma quantia fixa de dinheiro, os jogadores precisarão realizar a ação de arrecadação de fundos para obter mais receita e, ao mesmo tempo, equilibrar capital versus dívida. O que torna essa mecânica ainda mais interessante, é o fato de que para realizar as várias ações como pesquisar ou contratar empregados para comercializar as idéias, o jogador removerá cubos de seu quadro financeiro. Ou seja, a medida que seus agentes financeiros assumem um novo papel (pesquisadores, sindicalistas, etc.. ) você terá menos capacidade de gerar dinheiro. Existem maneiras de se obter Agentes adicionais, principalmente por meio do ato de comercializar idéias, mas é um empreendimento caro tanto em termos de tempo quanto de finanças.
Comercializar uma ideia (tirar uma carta do mercado) requer uma combinação complicada de fatores. Como disse anteriormente, tudo começa no processo de sindicar tais idéias, ou colocar um agente (cubo) na carta e até isso pode exigir um custo variável caso já tenha alguém investigando aquela idéia ou mais de um cubo se for necessário alocar agentes para combater possíveis efeitos colaterais e agitações. Você também precisará de um trabalhador para criar sua nova invenção; esse trabalhador pode ocupar uma instituição ou barreira para reduzir o quanto você está pagando e, o mais complicado de tudo é que a ideia que você está comercializando precisa ser viável. Tematicamente isso significa que o mundo precisa ter pré-requisitos para absorver aquela novo conceito, seja em seu processo evolutivo, detenção de patentes ou no pré-desenvolvimento daquela idéia em um think tank (laboratorio criativo) do jogador. Em efeitos práticos do jogo significa que o par de cores daquela carta precisa estar visível em um outro lugar, e acreditem , criar essas pré-condições é pode ser um exercício excruciante.
Mas quando você consegue organizar essa sequência de ações e finalmente comercializar uma idéia, é onde acontece uma explosão de eventos, as idéias vem acompanhadas de impactos (mecanismo que já estamos acostumados nos outros jogos da série), e também da enorme sensação de recompensa por ter cumprido uma tarefa que você se propôs a fazer há vários turnos. Os Impactos são os efeitos desencadeados pela implementação de novos conceitos na humanidade,recompensas ao jogador por ter concretizado uma nova ideia, como resolver problemas globais (que podem ser pontos de vitória dependendo do final da partida, instalação de empresas em uma das esferas, receber novos agentes financeiros, entre outras coisas. O ato final da ação Comercializar é adicionar a carta de ideia escolhida ao que é conhecido como Splay de progresso humano.
Esse Splay é basicamente o DNA cultural e tecnológico da humanidade - inclusive as as letras de suas quatro disciplinas começam com A, C, G e T - o registro evolutivo através das idéias implementadas que produzem conhecimento prévio para viabilidade de novos conceitos (a sequencia de cores no splay serve como parâmetro de viabilidade) Aqui pode inclusive rolar um bloqueio quando um jogador declarar propriedade pessoal sobre partes específicas desse DNA, impedindo que outros jogadores usem a faixa de cores correspondente ao tentar comercializar suas próprias idéias. Um cubo em uma determinada disciplina do DNA humano representa um “Future Shock” ou traumas sociais gerados pela comercialização daquela idéia, mudanças radicais em um curto período. É por isso que apenas os jogadores com cubos naqueles traumas podem usar a ideia, uma vez que não é totalmente integrada ou aceita pelo consenso mas que segue sendo desenvolvida pelo jogador em questão.
Inclusive uma condição de final de jogo é através da singularidade, quando o crescimento tecnológico acelera além do ponto de ser administrável ou compreensível - isso significa que as necessidades humanas atualmente compreendidas tornam-se obsoletas ou sem sentido. Os únicos jogadores que pontuam são aqueles que estão suficientemente preparados ou à frente da curva, e que podem encontrar algum significado em um mundo onde seus sistemas de valores foram revirados, ou seja, aqueles que tem mais cubos em choques de futuro.
O Splay também define o regime global através da sua vanguarda ou cutting-edge (as cores das 3 últimas idéias comercializadas) Por exemplo, quando as cores do cutting-edge são todas diferentes; isso mantém o jogo travado na globalização. Durante um período de globalização, o mundo em desenvolvimento é o rei, financiado por pesados subsídios, e nenhuma esfera é considerada mais importante do que qualquer outra. Já com uma sequência de duas cartas azuis no cutting-edge a esfera da Nuvem passa a ser dominante, ou seja, dados em abundância e não centralizados tornam por exemplo a ação de pesquisa gratuita, as patentes de computação valem mais e as empresas baseadas na nuvem e os problemas resolvidos nessa esfera valerão pontos extras caso o jogo termine nesse regime. As mudanças de regime são um elemento fundamental no jogo, além de redefinirem algumas regras, ainda podem alterar a condição de final de jogo (como a singularidade descrita acima), sendo assim, controlar o progresso humano é fundamental no planejamento em busca de uma vitória

Conclusão
Pax Transhumanity requer algumas partidas para conseguir um aprendizado por completo e visualizar os caminhos possíveis que ele sugere. Principalmente na questão dos diversos modos de fim de jogo e condição de vitória. Porém posso garantir que a recompensa de ultrapassar essas barreiras de aprendizado e dominar o jogo é muito rara e gratificante.
Sou repetitivo sempre que falo sobre a experiência de se jogar um título da série Pax, mas são afirmações cada vez mais consolidadas na minha percepção. Primeiro é que nenhum jogo é por si só temático, o tema está na capacidade de abstração, imaginação e vontade dos jogadores. Claro que uns jogos, mais que outros, fornecem mais ferramentas e facilidades para essa imersão, e pra mim os jogos Pax dão o kit completo sempre.
A segunda é que passear pela série pax é construir uma narrativa, seja num recorte histórico, seja num ambiente futuro de progresso da humanidade. Jogar Pax Transhumanity é desenvolver um destino para o futuro da nossa sociedade. Não num cenário clichê distópico, mas num ambiente humanista onde a busca pelo progresso vai extinguindo as mazelas globais que nos aflige no presente.
A perspectiva de moldar o futuro a partir de uma visão do presente, faz de Pax Transhumanity o melhor board game de ficção científica já criado.
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