Recentemente, num grupo de whatsapp sobre board games, um colega perguntou sobre o card game do Arkham Horror (AH). Disse que estava interessado, mas queria entender antes como era o esquema das expansões, boosters, etc. Sabendo que, tanto o card game do AH quanto o do Senhor dos Anéis (SdA), geram muita confusão para os que não estão familiarizados com o formato LCG e com card games cooperativos (já vi algumas pessoas comprando o SdA, lançado e descontinuado aqui pela Galápagos Jogos, e se arrependendo, pois pensavam se tratar de um jogo competitivo), resolvi gravar alguns áudios para esse colega explicando direitinho do que se tratava e como funcionava. O mesmo, de imediato, sugeriu que eu colocasse algo aqui na Ludopedia trazendo esses esclarecimentos. Era uma ideia que eu tinha desde que entrei de cara nesse mundo (jogo e acompanho os dois LCG), então resolvi seguir a sugestão e aqui estamos.
A ideia é falar sobre os dois jogos e, para os que se interessarem, fazer um comparativo entre os mesmos. Mas percebi que, se quisesse explicar tudo com detalhes e destrinchar ao máximo ambos os card games, um único texto ficaria muito grande e cansativo. Então resolvi dividi-lo em quatro partes: 1. O que é LCG e como funciona um card game cooperativo; 2. O Senhor dos Anéis: Card Game; 3. Arkham Horror: The Card Game; e 4. O Senhor dos Anéis x Arkham Horror.
Então vamos lá!
O QUE É LCG?

O Living Card Game (LCG) é um formato de jogos de cartas criado pela editora Fantasy Flight Games (FFG) e originário dos Collectible Card Games (CCG), como, por exemplo, os famosos Magic The Gathering ou Pokemon Trading Card Game. Em ambos os tipos, de uma forma geral, há a necessidade de aquisição de um deck base/inicial, com o qual o jogador irá desafiar seus oponentes, e que irá sendo modificado através da compra de pequenos pacotes/packs de expansão (ou, normalmente, boosters), envolvendo, portanto, um sistema muito forte de construção de deck (deck construction). Porém, nos CCG, esses packs (e alguns decks básicos) são formados por cartas aleatórias, de modo que o comprador não tem conhecimento, exatamente, do que está adquirindo em termos de cartas. É exatamente neste ponto que os LCG começam a se diferenciar dos CCG.
Num card game no esquema dos LCG, há um lançamento inicial de um Core Set (uma espécie de “caixa base”), que é, basicamente, um jogo completo por si só, contendo os componentes (regras, tokens, peças, dados, tabuleiro, etc., dependendo do jogo específico) e as cartas necessárias para uma experiência completa do jogo, normalmente envolvendo 2 pessoas (ou mais com a aquisição de mais de um Core Set). Ao contrário da maioria dos CCG, não é necessário que cada jogador compre ou possua seu próprio deck – um único Core Set é o suficiente para levá-lo à mesa e começar a jogar.
Adicionalmente, nos LCG há também o lançamento periódico de expansões, porém seu conteúdo é fixo, com cartas distribuídas de forma não-aleatória. Quando compra uma dessas expansões, você sabe exatamente quais cartas está adquirindo (consequentemente, não há nível de raridade para cada carta e, assim, elas não são colecionáveis, neste sentido). Essas expansões são lançadas, quase que padronizadamente, com frequência mensal, alternando entre as deluxe expansions (expansões em caixas maiores e com mais conteúdo de cartas) e sequências de 6 pack expansions (expansões menores, com 60 cartas).

Como dito, os Core Set possuem todo o conteúdo necessário para uma partida do jogo, sendo, portanto, obrigatório caso você queira utilizar o conteúdo de quaisquer expansões, visto que estas possuem somente cartas e não contém material e regras necessárias para uma partida. Dependendo do LCG, cada deluxe expansion inaugura os chamados ciclos e pode trazer adições ao sistema do jogo, com novas regras que serão implementadas para todo o restante do ciclo, que se segue com mais 6 pack expansions. Após o lançamento de todo o conteúdo de um ciclo, se inicia outro com a publicação de uma nova deluxe expansion e, assim, esse esquema se repete até que o jogo seja descontinuado. Tudo isso, repito, com uma frequência quase mensal de lançamentos.
Estas características variam de um LCG para o outro, mas, no geral, seguem um modelo bem parecido. Quando você aprende e entende o funcionamento de publicações de um jogo nesse formato, você irá sacar como funcionam os outros.
(Obs.: O termo “Living Card Game” é patenteado pela FFG, logo, de uso exclusivo da empresa. Porém, já existem outras editoras lançando jogos com estruturas semelhantes, tendo como base, sempre, a disposição fixa de cartas no conteúdo básico e em suas expansões.)
Os primeiros LCG, Call of Cthulhu e A Game of Thrones (1ª edição), foram publicados em 2008 e vieram como um reboot de suas respectivas versões CCG, lançados anos antes. Daí se seguiram diversos outros LCG baseados em franquias famosas: Star Wars, Android (com o Netrunner, talvez o mais famoso deles por aqui), Warhammer (com dois LCG diferentes, o Invasion e o Conquest), etc. Apesar do sucesso de quase todos, os jogos citados foram, entretanto, descontinuados com o tempo, não sendo mais produzido conteúdo adicional para eles. Atualmente, apenas quatro LCG seguem recebendo expansões periódicas: A Game of Thrones (2ª edição), Legend of the Five Rings, The Lord of the Rings e Arkham Horror, sendo estes dois últimos os únicos cooperativos dentre todos os LCG já desenvolvidos.
E é justamente sobre eles que queremos conversar.

COMO É UM LCG COOPERATIVO?
Tendo sido baseado em jogos como Magic The Gathering, é natural que os LCG tenham uma natureza fortemente competitiva. Quase todos são, prioritariamente, jogos de confronto direto para 2 pessoas – uma competição para ver quem tem o melhor baralho/deck (o A Game of Thrones, inclusive, possui um sistema que funciona muito bem com mais de 2 jogadores). Isso acaba criando um cenário competitivo meta-jogo muito forte, com diversos campeonatos pelo mundo, e estimula muito a análise prévia das cartas disponíveis e a construção de decks. Talvez essa seja a grande sacada do LCG: você não precisa se preocupar em sair comprando boosters para encontrar uma determinada carta, ou compra-la avulsa na internet por rios de dinheiro. Sabendo especificamente o conteúdo de cada expansão, você sabe exatamente o que precisa pegar para melhorar seu deck – ou, até, te deixa confortável para ter tudo que for lançado e ir formando diversos decks com estratégias diferentes e com os quais você pode jogar com os amigos, sem necessariamente um comprometimento com o cenário competitivo. O formato acaba sendo mais acessível e, até, trazendo estratégias mais facilmente praticáveis.
Porém, em 2011, a FFG resolveu inovar ainda mais e lançou a versão LCG d’O Senhor dos Anéis, abandonando esse aspecto competitivo e trazendo uma experiência completamente cooperativa. O jogo foi lançado no Brasil pela Galápagos, mas não fez muito sucesso aqui e foi abandonado pela editora. Apesar disso, teve bastante êxito lá fora e, hoje, é o LCG mais longevo, muito elogiado por público e crítica e figurando, dentre os jogos customizáveis, no top 5 do BGG há muitos anos, estando na frente de jogos como Magic e X-Wing.

Com esse resultado positivo, a FFG trouxe, em 2016, outro LCG cooperativo, desta vez ambientado num cenário até mais óbvio para esse tipo formato: Arkham Horror. Essa versão fez ainda mais sucesso e está em primeiro lugar na citada lista do BGG.
Mas sendo um tipo de jogo com um aspecto tão competitivo, como é que funcionam esses card games cooperativos?
Ambos os jogos possuem, basicamente, dois tipos de cartas: as cartas dos jogadores e as cartas dos cenários. As primeiras são as cartas com que cada jogador irá montar o seu deck, possuindo um tipo de carta especial que representa um personagem (em Arkham Horror) ou heróis (n’O Senhor dos Anéis) – essas cartas já começam em jogo, as demais irão compor o deck do jogador, de onde irá comprando cartas no decorrer da partida, como num card game normal. As cartas de cenário, em contraposição, irão formar um outro deck, “controlado” pelo próprio jogo e contra o qual os jogadores irão competir.
Portanto, cada partida se dará “contra” um cenário específico (ou quest, no caso d’O Senhor dos Anéis - mas, para facilitar, irei chamar tudo de cenário), que será configurado seguindo instruções próprias. Para isso, as cartas de cenário são divididas em sets, cada um com título e símbolo específico (este presente em todas as cartas do set). Daí, quando você vai preparar uma partida para jogar contra um cenário específico, as instruções irão indicar quais sets serão utilizados e, com as cartas dos sets indicados, você irá montar o baralho contra o qual irá jogar. Então, por exemplo, para jogar contra o primeiro cenário d’O Senhor dos Anéis, “Passagem pela Floresta das Trevas”, você deve separar as cartas dos sets “Passagem pela Floresta das Trevas”, “Aranhas da Floresta das Trevas” e “Orcs de Dol Guldur” e juntá-las para formar o deck do cenário. A mesma ideia vale para o Arkham Horror.
Todo cenário possui um set principal, normalmente com o mesmo nome (como indicado no exemplo acima). Esse set principal possui um subtipo especial de cartas, que são as que irão indicar os objetivos do cenário (o que os jogadores precisam fazer para vencê-lo) e medir o avanço da partida em termos de narrativa. Ou seja, são as cartas que trarão a ambientação e história de cada cenário. Tais cartas são numeradas e formarão um pequeno deck, normalmente com apenas três cartas, que deve ser montado seguindo a sequência da numeração e de forma que apenas a carta do topo esteja acessível para os jogadores. A primeira carta conterá alguma instrução adicional para o cenário (por exemplo, um monstro específico que já começa em jogo) e a condição para que você avance no jogo e passe para a próxima carta. Conseguindo cumprir aquela condição, você vira a carta, lê algumas informações (narrativas e mecânicas) e a descarta, revelando a próxima – esta também poderá ter instruções adicionais e, naturalmente, o objetivo que você deve cumprir para passar para a próxima. Os jogadores irão vencer o cenário quando conseguirem cumprir o objetivo de todas essas cartas.
As demais cartas dos sets selecionados para montar um cenário (as “não-especiais”) serão embaralhadas juntas e comporão um deck fechado, de onde os jogadores irão revelando cartas, de acordo com as regras, que irão se constituir nos desafios a serem enfrentados: monstros e localidades específicas, no caso d’O Senhor dos Anéis, ou monstros e eventos, para o Arkham Horror.
Em termos de conteúdo, ambos os jogos seguem o mesmo esquema básico dos demais LCG. Há, inicialmente, o lançamento de um Core Set com todo o conteúdo para você iniciar o seu jogo. Aqui, sendo jogos cooperativos, há a possibilidade de se jogar solo ou com dois jogadores, ou seja, os Core Sets possuem cartas de jogadores suficientes para construir dois decks distintos – e, caso se queira jogar com mais de duas pessoas, basta possuir Core Sets adicionais. O Core Set de cada um dos jogos possui cartas de cenário divididas em sets que comporão três cenários diferentes, todos relacionados tematicamente, formando uma espécie de mini-campanha.
As deluxe expansions virão com cartas de jogadores adicionais e inéditas, com novos personagens/heróis para construir os decks. Além disso, novos cenários (normalmente, dois ou três, mas depende da expansão) que iniciarão uma nova campanha (narrativamente, independente da mini-campanha do Core Set e das campanhas de outras deluxe expansions) e, consequentemente, um novo ciclo. A história desse ciclo continuará em 6 pack expansions, cada uma contendo mais (poucas) cartas de jogadores e cartas de cenários para montar um (e somente um) novo cenário. Ou seja, cada ciclo se constituirá em 1 deluxe expansions e 6 pack expansions, contemplando cerca de 8 cenários diferentes. Com o fim de um ciclo, é lançado uma nova deluxe expansions, iniciando um outro ciclo.
Ademais, na sua montagem, (quase) todos os cenários de todas as expansões exigirão, ao menos, as cartas de um dos sets presentes no Core Set. Da mesma forma, os cenários das pack expansions necessitarão de sets da deluxe expansion do mesmo ciclo. Ou seja, o Core Set não só é obrigatório pelo seu conteúdo (em termos de componentes), mas também porque seus sets serão usados nos cenários das expansões. Os cenários das pack expansions podem até serem jogados de forma independente, mas será necessário, no mínimo, o Core Set e a respectiva deluxe expansion (além de ter a narrativa da campanha “quebrada”).
De forma geral, como dito, os jogadores vencem quando conseguem cumprir todos os objetivos do cenário e perdem quando seus personagens/heróis morrem (cada um dos jogos possui outras condições de derrota específicas). No caso d’O Senhor dos Anéis, que é mais mecânico que o outro jogo, os objetivos de cada cenário são claros e diretos – ou você cumpre aquelas condições de vitória ou será derrotado (o que é bem provável nas primeiras partidas naquele cenário). Se o caso for este último, você pode repetir o cenário até vencê-lo e, assim, passar para o próximo. Já em Arkham Horror, mais centrado na narrativa, cada cenário disporá de diversos desfechos diferentes, que dependerá de como você se saiu e do que aconteceu na partida. Independentemente do desfecho, você seguirá para o próximo cenário, provavelmente carregando consequências do resultado da partida anterior. Não há quesitos específicos para vitória ou derrota, mas apenas indicações de como a narrativa continuará dependendo de como os jogadores se saíram.

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Creio que seja tudo para esta primeira parte. O objetivo, aqui, foi esclarecer como funciona um LCG cooperativo, centrando no funcionamento superficial desse formato e nas semelhanças entre O Senhor dos Anéis e o Arkham Horror. Nas partes 2 e 3 procurarei destrinchar cada um desses jogos, detalhando regras, construção dos decks e jogabilidade. Por fim, na parte 4 farei um paralelo entro os dois, ressaltando, agora, as diferenças e o que cada um tem como vantagem e desvantagem.
Como sempre, o intuito da Confraria de Jogos é estimular o debate. Coloquem aí seus comentários e questionamentos sobre essa postagem, os jogos aqui tratados ou, até, o formato LCG de uma maneira geral.
E acompanhem as demais partes dessa sequência de postagens sobre os LCGs cooperativos: