As férias na "casa da vó" eram fantásticas. Para quem vivia o semestre inteiro com as limitações da cidade grande, ir para o interior era sinônimo de liberdade. De todas as brincadeiras que inventávamos a mais aguardada era com certeza a "corrida de tampinha de garrafa".
Costumávamos esquecer do tempo enquanto nos alternávamos em dar petelecos em tampinhas de garrafa, fazendo-as percorrer uma pista de corrida feita na areia em alusão às corridas de "fórmula 1" que era nossa "febre" lá no começo dos anos 90. Naquela época travávamos uma verdadeira briga para ver quem seria o “Senna”, o “Piquet”, o Mansel ou o Proust. Eu sempre era o Piquet (por ser o mais velho escolhia primeiro).
As corridas aconteciam todos os dias nas férias, e cada etapa do campeonato seguia a sequência oficial das disputas da fórmula 1. O formato das pistas se aproximavam muito dos circuitos reais e isso nos dava a possibilidade de “estudar” melhor forma de jogar quando estivesse “valendo”. Uma opção para estudar os circuitos era uma revista de vídeo game que dava umas dicas de como jogar "Super Monaco GP" do Master System.
Para definir o grid de largada, todos tinham direito a uma única volta. Aquele eu completasse a volta em com menos petelecos teria melhor posição na corrida.
Uma das regras inventadas "na hora": quem levasse "volta" era eliminado da prova.
> O jogo acontecia turno a turno. Cada jogador tinha direito a 3 petelecos e vencia a corrida quem primeiro completasse 2 voltas.
> Se o seu “carro” saísse da pista, ele voltaria “3 palmos” a partir do local de saída;
> Se o seu carro colidisse com outro, seu turno se enceraria imediatamente e como penalidade seria obrigado a voltar “1 palmo”.
> Limpar a pista, ou movimentá-la (“pro ladinho”) tinha como punição a perda do turno. Esa regra era a que gerava maior desavença.
> Quem furasse a vez do outro seria punido com a perda de 1 peteleco.
> “Capotar o carro” implicava também no encerramento imediato do turno.
> Curiosamente era permitido fazer a tampinha “saltar” dando impulso na parte interna da tampinha ao invés do peteleco tradicional.
A coisa aconteceu meio que por acaso, enquanto conversávamos à beira de um pequeno tanque de peixes onde meu pai costuma praticar seu hobby preferido (e que me motivou a criar o jogo Fishing on Sunday). Com um "caco de telha" desenhei despretensiosamente uma pista de corrida na areia e isso logo despertou o olhar do pessoal.
Achei que a principio iam me "zoar" enquanto eu estava lá desenhando uma pista aleatória na areia. Já me acostumei aos olhares de estranhamento dos alunos quando os levo para fora da sala e começo a desenhar uma "pista" na areia. São em momentos como este que tenho a oportunidade de explicar conceitos como velocidade, aceleração, força e atrito usando "corridas de tampinha de garrafa".
"manutenção" da pista durante a prova
Mas o que aconteceu (para minha surpresa) é que um dos meus irmãos (Proust) deu a ideia de "brincarmos" de corrida de tampinha como "antigamente" e logo começou uma verdadeira busca por tampinhas pela chácara. Minha mãe e nossas esposas não entenderam bem o que estava acontecendo enquanto vasculhávamos o local de armazenamento de resíduos plásticos.
Antigamente nossas tampinhas eram de "metal" e raspar o fundo delas era uma forma de "preparar" o carro para ele ganhar mais velocidade, vez ou outra alguém alegava que não era permitido usar "pneus slick". Em outra época era habito ter duas tampinhas, uma raspada e outra sem raspar, acreditávamos que dependendo de determinados trechos do circuito uma tampinha era 'melhor" que outra. Mas as tampinhas de plástico ficaram no passado e tivemos que nos contentar com as tampas plásticas de garrafa PET. Curiosamente ainda não descobrimos quem abriu antecipadamente o refrigerante que era do almoço.
Logo estávamos todos, cada um com seus carro relembrando momentos que a vida adulta e a correria dos dias nos fazem esquecer. Quase 30 anos depois reviver parte dessa sensação, ao lado de meus melhores amigos, meus irmãos e meu pai (Fitipaldi) é algo que nenhum outro jogo já me proporcionou. Curioso é perceber que as velhas manias, “zoeiras” e “brigas” ressurgiram naturalmente fazendo homens agir como crianças em uma brincadeira "séria". Na torcida, filhas, sobrinhas, esposas e minha mãe (cada qual torcendo para o seu pai/marido).
Mudamos algumas regras e criamos outras "na hora" e à medida que iam aparecendo os conflitos riamos, e "fingíamos" um descontentamento com a decisão tomada pela maioria. Nas primeiras corridas meu irmão mais novo ficou em último e rapidamente foi chamado de "rubinho". Risos para todos os lados. Meu pai defendeu-o: ele era o "estreante" na brincadeira já que nasceu depois que passamos por essa fase.
As últimas corridas foram mais disputadas e teve uma em que o carro vermelho parou na linha (juro) de chegada e foi ultrapassado por todos os outros (precisa dizer quem foi?). Risos e mais risos pelo resto do dia. Um dia mágico em que o "jogo da vez" não nos custou 1 centavo.
Quando lembro de dias como esse me vem na memoria um filme que vez ou outra passava na sessão da tarde chamado
Coupe de Ville (O cadillack azul / 1990) onde um pai resolve reunir seus filhos, separados pelo viés da vida, para presentear a mãe com o seu primeiro carro. Juntos os 3 filhos viajam com "o presente" para a mãe e quando chegam ao seu destino o pai revela que na verdade o carro era só a desculpa. O verdadeiro presente era reunir "toda a família" novamente.
Eu não ganhei nenhuma corrida (o Rubinho também não). "Proust" e "Senna" brigaram pelo título e o "Francês" prevaleceu. Mansel competiu bem mas aquela tarde não lhe pertencia. No final, acho que quem ganhou o maior presente foi o "Fitipaldi": ver seus filhos brincando ao seu lado como nos "tempos antigos". Meu pai sempre foi o homem que eu desejei ser e naquela tarde aprendi mais uma lição, como conduzir o seu legado.

momentos de tensão
Uma tarde inusitada de inverno Curitibano que nos presenteou com um dia dos pais antecipado. Na eminência de um processo cirúrgico, desejo que meu pai possa estar conosco no próximo ano para "revivermos" esse dia, mas no caso disso não acontecer tenho certeza que esse foi um dos maiores presentes de "dia dos pais" de sua vida, e da minha também.