Algumas vezes, sair da sala de aula é como emergir do mar e ter a visão ofuscada pela luz vinda do céu em um dia ensolarado. Você nunca sai da mesma forma que entrou, você é transformado e naquela manhã após passar pela porta, minha mente estava nublada. A intensidade da aula não me dera tempo para acomodar as ideias surgidas e foquei minhas preocupações em como iria avaliar os estudantes da terceira série na próxima aula de uma forma que os surpreendessem (de uma forma boa é claro). Para alguém que sente a necessidade de se reinventar todos os dias isso é um desafio constante (as vezes sufocante).
Avaliação Prática de Estudantes Ens. Médio.
Me deparei com alguns alunos do oitavo ano pátio da escola. Estavam sem aula pois o professor havia faltado, meu colega de trabalho havia adoecido e a turma liberada para a quadra poliesportiva: iriam jogar bola supus. Pensei em não esquecer de ao final da manhã ligar para o professor e colocar minha ajuda à sua disposição caso necessitasse. A falta de saúde é algo que se acentua exponencialmente com o passar dos anos de profissão. Isso é como estar em um acelerado bote na correnteza de um rio e avistar à distância a cachoeira.
Imagem da Internet. Acesso am Abril/16.
Era meu horário de planejamento de aula e demorei-me um pouco a ir para a sala "do castigo" ao tempo em que conversava com alguns dos meninos sobre cardgames. Foi então que um deles deu a ideia de jogarmos alguma coisa e com autorização da orientadora pedagógica propus aos meninos jogarmos algo mais lúdico que pokémon. Eles adoraram a idéia (já que vivem me perguntando pelos jogos de tabuleiro dos quais tanto falo).
Os jogos que a escola possui não são nada atraentes para eles e confesso que eu também acho-os muito chatos, então dei a sugestão de criarmos um jogo para passarmos o tempo e tentar aprender alguma coisa. Eles concordaram e começaram a dar ideias "aos montes", quase todas com bastante influência da cultura RPGística com elfos, dragões, magias e combates de espadas. A idéia de criar algo grandioso é comum a todos quando tentam conceber um projeto então lembrei-lhes que tínhamos menos de 50 minutos e por isso o jogo deveria ser simples.
Fotografia da Internet. Acesso em abril/16.
Dois anos antes com esses mesmos meninos eu já havia apresentado a eles uma maneira de se divertir dando petelecos em tampinhas de suco por uma "pista" sinuosa feita na areia "ala PitchCar". Na verdade essa brincadeira foi uma constante em toda minha infância no interior da Bahia ou nas praias de Salvador. As condições financeiras de meus pais nunca permitiram que eu e meu irmão tivéssemos os brinquedos "da época" e isso me obrigava a constantemente ter que inventar os meus próprios ou me divertir das formas mais simples imagináveis. Me lembro de ter feito uma versão de tabuleiro do jogo Phantasy Star (Master System) com base em uma revista de "games detonados" (inicio dos anos 90). Curioso é que de alguma forma aquela brincadeira de "dar petelecos" em tampinhas despertou neles o gosto por coisas lúdicas.
Phantasy Star (imagem da internet). Acesso em abril/2016.
Decidimos criar um jogo de corrida. Logo veio a ideia de criar uma trilha e rolar um dado. O resultado seria o número de casas que um jogador poderia se mover. Concordei e rabiscamos uma trilha desengonçada em uma folha de caderno. Como marcadores foram utilizadas tampinhas de garrafa plástica encontradas aos montes na lixeira de recicláveis plásticos (vermelha). O dado de 6 faces surgiu magicamente do meu bolso.
Aqui vale outra reflexão. Quando se trata de jogos de corrida percebi que a primeira coisa que nos veio em mente é de uma trilha, pista onde duas ou mais pessoas partem de uma posição em direção a outra. Geralmente vence quem alcança a posição final primeiro ou em menos tempo. Me parece que a mecânica de rolar dados para mover-se por uma trilha é bastante intuitiva a todos. Como não era bem isso que eu queria provoquei eles a criarem alguma coisa que dificultasse a locomoção das nossas tampinhas por uma trilha que continha apenas 16 espaços válidos.
Primeira materialização do "jogo".
Retirando um outro dado do bolso, dei a sugestão de que um dado fosse negativo (vermelho) e outro positivo (branco) a soma dos dois resultados seria a quantidade de espaços que um jogador moveria sua tampinha pela trilha. Graças a aleatoriedade dos dados nunca foi tão difícil completar um caminho por uma trilha de apenas 16 espaços. O que eu gostei era que eles estavam realizando operações com números inteiros (positivos e negativos) e de alguma forma treinando matemática básica.
Apesar da festa que faziam graças aos resultados nos dados, o jogo que estava nascendo ali me parecia bastante propenso a ser abandonado por todos nós ao final daquela aula e esquecido para sempre. Os resultados positivos eram comemorados pelo jogadores que os obtinham. O resultado negativo de um jogador era comemorados por todos os outros. Resultados positivos nos faziam ir para frente e resultados negativos nos faziam ficar parados na trilha.
Como viria a ser o tabuleiro (versão 002)
Simplesmente jogar fora os números negativos passou a me incomodar então sugeri um sistema de pontos para temperar a brincadeira: Os resultados dos dados poderiam ser acumulados como pontos. Todo numero negativo penalizaria o jogador com pontos negativos. Ao mesmo tempo, os jogadores poderiam utilizar os resultados positivos para marcar pontos ao invés de mover-se pela trilha. Quando um jogador atingisse o final da trilha todos os pontos de todos os jogadores dobrariam.
Isso criou um fator estratégia interessante: Não bastava ser o primeiro jogador a completar a trilha, ele deveria ser o que possuisse mais pontos também. Ainda assim estava muito difícil completar a trilha de 16 espaços. Ficávamos contando os pontos negativos e positivos uns dos outros e planejando quando seria o melhor momento para chegar ao final da trilha.
Computo de pontos.
Faltando menos de dez minutos para o término da aula me veio a ideia de poder rejogar um dos resultados do dado ao custo de voltar 1 casa na trilha. Essa nova regra deu aos jogadores um pouco mais de controle sobre os dados.
No intervalo foram me buscar na sala dos professores para continuarmos nossa partida. Enquanto jogávamos uma multidão se aglomerou a nossa volta sem entender muito bem o que estava acontecendo e sem compreender a lógica que criamos para aquele jogo abstrato. Nos divertimos bastante e nunca chegamos a completar a trilha de 16 espaços. Pedi para que escrevessem as àquelas regras e pensassem em outras. Eu mesmo fui para casa pensando naquele jogo tosco que divertiu a mim e àqueles jovens por um bom tempo e causou curiosidade em tantos outros. Estava nascendo o que depois passei a chamar de Projeto 3R.