Jogos Abstratos e a Necessidade do Supérfluo.
O que me atrai em jogos puramente abstratos é o seu total descompromisso com qualquer coisa que não seja a coesão do conjunto de regras que os sustentam. Gosto desse aspecto de jogos abstratos e as vazes acho-o muito mais honesto do que jogos abstratos que se apresentam travestidos com algum tema genérico.
De um ponto de vista bem simplista, um jogo abstrato pode-se utilizar de um tema de duas formas: como roupagem para torna-lo um produto mais aceitável comercialmente ou como solução de design para tornar mais fácil a assimilação de algo do próprio jogo. Conheço (e não vou citar nomes por questões éticas) vários jogos abstratos onde seus autores tentam justificar seu tema criando “uma ou outra” situação que possibilite a interpretação de que regras e tema estão fundidos em uma coisa só. O que a meu ver é uma tentativa muito grande de negar o que o jogo traz de de mais belo: o fato dele ser abstrato e pronto.
Algumas pessoas torcem o nariz para jogos “abstratos”. O pretexto de que se assemelham muito a um algoritmo é sempre recorrente. Essas pessoas sentem a necessidade de que deva haver um motivo contextualizado para que uma regra ou mecânica faça “sentido”. Algumas vezes apenas a tematização não é suficiente para suprir essa necessidade e é comum que alguns jogos sejam acompanhados de diversos componentes ricamente trabalhados como miniaturas ou marcadores personalizados em formas e tamanhos diferentes. Não raro esses componentes são totalmente desnecessários para as mecânicas do jogo e geralmente acabam tornando-o um produto mais caro. As ditas edições de luxo utilizam bastante o argumento de possuir componentes de maior qualidade para vender a uma mesma pessoa um jogo que ela já possui. Note que estou diferenciando "jogo" de "produto", ambos são o mesmo jogo mas são produtos diferentes.
Como saber se um componente é imprescindível para um jogo? Substitua-o por outro mais simples e verifique se o jogo continua a funcionar. Claro que substituir uma miniatura de zumbi por um cubo de madeira ao menos visualmente faz muita diferença. Mas se a diferença visual não torna o ato de jogar impraticável, significa dizer que aquele componente é importante para o jogo porém ele não é essencial.
A adição de componentes não essenciais em jogos pode ser interpretada como um capricho, uma estratégia comercial ou erro de design. Um dos desafios de criar um jogo puramente abstrato é fugir da adição de componentes não essenciais. A busca pela simplicidade geralmente implica em dissecar o jogo incansavelmente até atingir sua essência por baixo de todas as tentações temáticas que nossa mente tenta induzir-nos a agregar ao jogo.
Talvez a tematização seja algo natural à nossa mente, que está fortemente enraizada a padrões que de certe forma nos facilitam a compreensão do objeto ou fenômeno sobre o qual atua nosso interesse. Essa necessidade do supérfluo para a criação de um jogo abstrato pode vir a ser muito prejudicial quando se prioriza muito mais o produto do que o jogo. Temos exemplos de jogos lindíssimos com componentes espetaculares mas que como jogo propriamente dito não estão a altura do dinheiro utilizado para produzi-lo.
A relação jogo e produto é um assunto bastante fértil e que por vezes é ignorado principalmente por quem costuma avaliar os jogos. E o que acontece é que assistimos a pessoa se propor a avaliar o jogo e esta começa a falar da qualidade dos componentes ou da caixa. E então percebemos que ela não está falando do jogo, mas do produto. E o analista por vezes justifica sua avaliação ou a nota que confere ao jogo por algo que não está dentro da fronteira do jogo, mas do produto. Não cabe o mérito de julgar aqui o conflito gerado pela separação do "que é o jogo e do que é o produto" e tampouco a avaliação honesta a qual tantos se dedica a fazer.
Mas quando que a tematização não é supérflua a um jogo abstrato? A resposta nem sempre é tão óbvia.
Na física e na matemática existe uma fixação imensurável pelo simples. Estamos sempre focados em responder coisas complexas da forma mais simples possível. Peço para que o simples não seja confundida com o simplório. Quando se faz essa transposição para a criação de um jogo abstrato ou que possua recursos bastante limitados (por exemplo um baixo orçamento disponível para sua produção) busca-se maximizar ao máximo a experiência de jogo ao mesmo tempo em que se busca simplificar ao máximo a sua execução. Note que um jogo fácil de jogar não implica necessariamente que ele seja desprovido de algum nível tático ou estratégico.
Dependendo do nível de simplicidade alcançada, ela própria pode se tornar um bloqueio ao desenvolvimento do jogo. Isso por que é natural (para a grande maioria dos seres humanos) uma vez que o nível de abstração exigido é diretamente proporcional ao nível de simplificação no processo criativo.
E é aí que um tema bem escolhido e bem aplicado pode fazer a diferença.
Passar a interpretar certas características de um jogo abstrato a partir de ótica de uma tematização pode propiciar o vislumbre de novas possibilidades no desenvolvimento de um jogo abstrato. Esse tema pode, é claro, ser descartado logo em seguida ou pode a partir deste ponto caminhar até o fim (ou não) com um jogo que fora concebido para ser puramente abstrato.