Saudades de um bom Feld, hein, minha filha?
Conheço muitos jogos do designer Stefan Feld. Desde 2003, nutri uma admiração por ele e, embora nem todos os seus jogos me agradem (Notre Dame, é você?), admiro-os de modo que, em minha coleção, possuo diversos dos seus títulos.
Porém, ao longo do tempo, fui me tornando um pouco chato e desanimei um pouco com eles: embora enxergue uma vasta gama de mecânicas e uma certa originalidade em como elas se relacionam, passei a ter a sensação de que não importa muito o que você vai fazer, pois é muito comum, em seus jogos, tudo o que você fizer resultar em pontos (muitos pontos), o que muitas vezes me traz a sensação de que as suas decisões não são lá muito importantes assim.
Isto me fez ir jogando cada vez menos os seus jogos e foi o que, em princípio, me afastou de Bonfire. Porém, após ler alguns reviews e falar com alguns amigos, resolvi, revisitar o velho conhecido Feld e avaliar se acharia o mesmo de seu jogo de gnomos. Será que ele me conquistou?
Bonfire: um novo Feld na área?
Não quero a salada de pontos regras, me diz logo o que achou (TL;DR)
Bonfire é um jogo maravilhoso composto de um tema único e original que apresenta um desafio muito interessante em que você precisa planejar a sua sequência de ações de modo a aproveitar a sinergia de suas execuções. Além disso, a ideia de você não ter todas as ações disponíveis durante o seu turno, mas de ter o controle sobre quais você vai disponibilizar para o futuro e a interação sutil nos objetivos comuns e tarefas, faz com que o jogo se torne um ótimo desafio de otimização de tempo. Feld se mostra extremamente maduro neste jogo que pode ser considerado um dos seus mais densos: em Bonfire, cada decisão significa muito e as ações possuem uma alta sinergia o que, ao meu ver, reduz muito a sensação de salada de pontos transmitida em outros de seus jogos anteriores.
Guardiãs, caminhos de luz, fogueiras: para onde vou agora, meu Deus?
Primeiramente, queria dizer que este item não se destina em hipótese alguma a explicar as regras de Bonfire. Tem muita coisa acontecendo aqui e vou tentar apenas dar uma pincelada para terem uma ideia do que se trata.
Bonfire se passa em um mundo de fantasia onde as fogueiras que o iluminavam se apagaram e nós, como gnomos tementes à escuridão, estamos em busca das guardiãs de tais fogueiras para elas possam iluminar o nosso céu novamente (vou falar a minha opinião deste tema sui generis no próximo tópico).
Para cumprir esta missão, vamos alternar turnos realizando ações, sempre com foco nas tais fogueiras.
Primeiro, podemos aprimorar nossos tabuleiros individuais de modo a construir um caminho para as guardiãs percorrerem até o local das fogueiras. Porém, não basta o caminho estar construído: precisamos de portais que efetivamente garantam o acesso. Para tal, podemos visitar a "grande fogueira", a última fogueira que ainda continua acesa no mundo (e que é representada em metade do tabuleiro principal). Caminhos e portais construídos, temos uma nova missão: usando nossos barcos, podemos visitar ilhas que contém tarefas, que são, nada menos do que oferendas às tais guardiãs. De modo prático, estas tarefas vão ocupar nosso tabuleiro de modo a representar as eventuais fogueiras: imagine estas tarefas como contratos que você precisa cumprir para efetivamente acender uma fogueira (exemplos de tarefas: possuir "x" recursos, ter a guardiã da cor rosa, etc). Estas tarefas são dispostas aleatoriamente nas ilhas no começo do jogo e possuem três níveis de dificuldade (azuis são fáceis de cumprir, vermelhas são médias e amarelas são bem difíceis).
A última fogueira remanescente: onde ocorre uma das interações interessantes do jogo
Caminho, portal, fogueira, de que mais precisamos? Ora, as guardiãs propriamente ditas! Podemos recrutá-las em algumas ilhas e, depois, fazê-las caminhar até que consigam proteger as tais fogueiras. Finalmente, nesta longa jornada, também podemos recrutar ajudantes que nos darão um bônus especial ao realizar determinado tipo de ação (especialistas) ou alguns pontos de vitória ao serem adquiridos (anciões)
Da forma que descrevi, parece que tudo isso é sequencial, mas é apenas uma forma que imaginei de encadear as ideias. A verdade é que, para realizar as ações, você precisa utilizar fichas que as representam e estas fichas são adquiridas quando, na sua vez, ao invés de realizar qualquer uma dessas ações descritas, você posiciona um ficha de destino em seu tabuleiro pessoal. A tal ficha de destino, contém 3 ícones de ações e te garantirá a aquisição destas fichas para a sua execução futura. Mais que isso, dependendo de onde você colocar as fichas de destino, você pode ganhar mais fichas de ação (se você conseguir colocar ícones similares adjacentes, por exemplo).
As fichas de destino são um desafio interessante a ser resolvido no seu tabuleiro de jogador
Assim, seu turno se resume a: colocar uma ficha de destino para conseguir fichas de ações ou executar algumas das ações que descrevi acima. Ao invés disso, porém, caso já tenha uma tarefa no seu tabuleiro de jogador e atenda aos seus requisitos, você pode optar por efetivamente acender uma fogueira. Quando isso ocorre, há a opção de enviar um noviço que estava supervisionando aquela tarefa para o alto conselho (na prática, o noviço no conselho te dá uma super ação de bônus imediata). Outra forma de mandar um noviço para o alto conselho é completando uma tarefa comum que está disponível a todos os jogadores desde o começo do jogo: estas tarefas funcionam como uma corrida, o primeiro a completá-la, ganha o bônus do noviço (exemplo de tarefas comuns: ter completado todo o caminho, ter recrutado todas as guardiãs, ter acendido as sete fogueiras, etc.)
O jogo termina quando uma certa quantidade de noviços já se encontra no alto conselho (este número depende da quantidade de jogadores) e a pontuação final inclui: as fogueiras acesas, os guardiões que chegaram efetivamente às fogueiras, as fogueiras com portais, os caminhos que possuem a mesma cor das fogueiras e, finalmente, as fichas de destino não usadas.
Bem simples, né? rs
Quando tudo se encaixa
Preciso começar falando do tema. Gnomos, anciãos, guardiãs, fogueiras? É sério?
Pensei a mesma coisa quando lia as regras e, embora tenha tido uma certa dificuldade inicial de imaginar tudo se integrando, quando consegui, preciso dizer que fiquei maravilhado. Primeiro preciso admitir a coragem do autor em sair do lugar comum e arriscar com um tema bem incomum: é fácil imaginar este jogo como uma fazendinha: o caminho poderia ser a construção de uma ponte, as guardiãs poderiam ser agricultores, etc. Porém, de nada adiantaria esta coragem se o tema mais confundisse do que ajudasse, certo? Contudo, não é o que acontece em Bonfire. Uma vez assimilado, é muito fácil imaginar a construção do caminho, dos portais e a procissão das guardiãs caminhando por ele. Para mim, isto é um tremendo de um ponto positivo.
Gnomos a parte, preciso mencionar o que chamaria de sinergia. Como tentei explicar ao pincelar as regras (não sei se fui bem sucedido), todas as ações estão amarradas a um plano maior que é efetivamente acender as fogueiras e pavimentar o caminho das guardiãs. Esta amarração é muito bem feita, de modo que todas as ações fazem sentido ao cumprimento do objetivo maior. Outro ponto interessante é que existem algumas pequenas peculiaridades das mecânicas que incentivam o planejamento de longo prazo: primeiro que você não tem todas as ações disponíveis sempre, já que isso depende das fichas de destino que você colocou no seu tabuleiro; além disso, a construção dos caminhos da procissão deve ser feita da esquerda para a direita, enquanto que os portais são colocados da direita para a esquerda. No texto isso parece confuso, mas no jogo fica evidente que você precisa se programar para as ações serem executadas no momento adequado (de que adiantar ter fichas de ação para a procissão se você não tem um caminho pavimentado ou uma guardiã pronta para andar ou ainda uma fogueira acesa esperando pela guardiã?). Todas as ações devem ser cautelosamente planejadas e é muito gostoso quando você consegue planejar uma cadeia de 5, 6 ações que se relacionam e colaboram com o objetivo final.
Uma camada adicional ao encadeamento de ações é o cumprimento das tarefas comuns: quando bem planejado, é possível disparar várias ações em sequência, o que é, ao meu ver, um dos maiores prazeres proporcionados pelo jogo.
O fim da procissão: guardiãs em suas fogueiras. Que jogo feio, hein?
Parece que todo este planejamento pode levar a um longo processo de reflexão, o que geraria uma certa AP (analysis paralysis) nas partidas. Entretanto, em minha experiência, isso não foi verdade: o processo analítico não é tão denso e as ações são simples o suficiente para que se consiga se planejar rapidamente, sem impactar na velocidade da partida (em 2 jogadores, por exemplo, temos levado aproximadamente 50 minutos, o que é uma tempo excelente se considerarmos a complexidade deste tipo de jogo).
Outra coisa que gostei muito foi uma leve mudança de Feld no sistema de pontuação: como já mencionei, enquanto em muitos dos seus jogos você pontua a cada ação que faz (o que faz o autor ser considerado por muitos como o pai da chamada "salada de pontos"), aqui os pontos no decorrer da partida são mais escassos: arrisco a dizer que uns 90% da pontuação ocorre no final do jogo. Também acho importante salientar que, embora exista muitas condições de pontuação ao final da partida, o fato de elas estarem muito bem amarradas, não me trouxe, em momento algum, uma sensação de que "tudo que eu faço me dá pontos" que já havia sentido em outros jogos do autor.
Outro aspecto muito importante é a interação entre os jogadores: achei-a super adequada, não agressiva e tampouco punitiva, mas que permite, em muitas ocasiões, afetar o jogo do coleguinha.
Finalmente, apesar de não haver assimetria entre os jogadores (até há, mas é irrelevante), o setup inicial garante uma vasta gama de combinações iniciais, impedindo que as partidas se repitam ao longo do tempo.
Visão geral: gnomos, guardiãs, barcos, e muito mais!
Quando o encaixe é imperfeito
Confesso que estou apaixonado pelo jogo e sofri um pouco para pensar em algo negativo a dizer sobre ele. Para isso, tive que recorrer à minha esposa, que está um pouco reticente em continuar jogando.
Na visão dela (e consigo entender isso) não há um norte para as partidas. Embora você sabia que deva construir caminhos, fogueiras, etc, não há algum componente no jogo que o direcione estrategicamente a o que fazer primeiro ou a como direcionar o seu jogo (já que raramente você vai conseguir fazer tudo que o jogo te oferece). O início do jogo costuma ser uma análise das tarefas (existem mais tarefas fáceis? difíceis?) e dos ajudantes disponíveis para compra ("hmm... tem um rapaz ali que dá bônus na construção de caminhos, acho que vou nele e vou focar em pavimentação"). Porém, são tantas opções (ilhas, ajudantes, grande fogueira), que isso pode soar cansativo aos menos preparados. No caso da Le é o que tem ocorrido: sua reclamação é que ela se sente perdida no mar de sugestões de ótimas jogadas que o tabuleiro oferece (consigo até imaginar uma expansão que distribuiria objetivos iniciais assimétricos aos jogadores, funcionando como uma bússola ao longo da partida). Também imagino que ela tenha desgostado do jogo por nunca ter vencido nenhuma de nossas partidas... rs
O bom e novo Feld
Ao meu ver, o grande ponto negativo de Bonfire é o fato de minha esposa (e companheira de jogatinas na quarentena) não ter se animado tanto e, portanto, o potencial de ver mesa ter diminuído.
Brincadeiras a parte, falando do jogo em si, ele tem tudo que se espera de um euro mais denso: vários caminhos para a vitória, interação baixa, mas presente, e um ótimo desafio de otimização e encadeamento de ações. Digo mais, não consigo lembrar de nenhum jogo que tenha jogado nos últimos anos que contenha tanto e possa ser jogado em tão curto espaço de tempo (e olha que ando
apaixonado pelo Praga ultimamente, hein?).
Veredito: mantenho na coleção. Só preciso convencer a Le a gostar do jogo como eu gostei!