Eu gosto de jogos pesados. Acho que isso já é mais ou menos claro para quase todas as pessoas que me conhecem. Mas de forma até estranha, eu não sou um fã incondicional de Vital Lacerda. Veja, eu amo Lisboa. O jogo está bem alto no meu Top 100 melhores jogos de todos os tempos. Mas os outros jogos dele que joguei, como Gallerist, Escape Plan ou Kanban, não figuram entre meus favoritos. Escape Plan inclusive eu vendi sem nem abrir o meu.
Uma das características que eu peso bastante em analisar jogos pesados são: o quanto esse jogo me proporciona uma experiência diferente de outros jogos e o quanto, as complicadas regras e tempo desprendido são compensados por essa experiência no final. É isso que me faz querer jogar um jogo de novo e de novo após algum tempo. O tempo que eu gastei valeu a pena? E consigo a mesma coisa de outro mais simples ou mais rápido?
Quando eu
analisei o Lisboa eu falei do quanto o Vital foi capaz de simplificar e deixar o jogo dele mais stremlined. E o quanto isso aumentou minha relação de custo (em tempo) e benefício do jogo. No caso do On Mars, isso não ocorreu. Pelo contrário, muitos sites e analistas disseram que era o jogo dele mais complexo. Então, ele precisava entregar muito no benefício para compensar o tempo. E ele faz! Mas vou começar pelo 1o ponto, a experiência única.
On Mars começa a ser diferente(e único) logo de cara na sua mecânica básica. O jogo parece ser de alocação de trabalhadores, mas ele não é. Ele é um jogo de seleção de ação. A cada rodada você escolhe uma ação para fazer e a faz e pronto. Algumas delas você precisa alocar um trabalhador, como se fosse um recurso, mas não são todas. Vital sempre foi temático na escolhas e eles lhe dá a liberdade de fazer coisas que não necessitam de pessoas tematicamente, na ação de, por exemplo, movimentar seu Robô e/ou Rover na superfície de marte. É algo programado, ou controlado a distância, então você não precisa de um trabalhador em marte para isso. Mas até aí, não há nada de novo ou revolucionário. A coisa mais interessante aqui do jogo então, é a divisão do tabuleiro em 2 áreas: a órbita e a superfície de marte.

Durante o jogo, você escolhe onde quer começar e, de tempos em tempos, tem de decidir se vai embarcar na nave espacial para mudar de lado. Ou seja, se você está na superfície, só pode fazer ações de superfície, e se tiver na órbita, só pode fazer ações da órbita, Tipo o Inverno e o Verão de Viticulture sabe? Só que aqui, você escolhe quando ir de um lado para o outro, obedecendo as restrições. Isso por que a nave espacial só se desloca em 1 sentido por vez. Ou seja, se ela estiver descendo da orbita para marte, quem está em órbita pode embarcar e descer, mas quem está em marte não pode ir para a órbita neste momento. Tem de esperar a nave fazer o caminho no sentido contrário.
No começo do jogo, esse mecanismo acontece bastante vezes, mas com o andar da carruagem, ele começa a ficar mais raro e você tem que acertar bem o timing de quando ir para órbita, que é onde você faz ações de preparação (recursos, tecnologias, etc) e quando você precisa estar em Marte, onde você faz ações de construção e desenvolvimento do planeta, que é como, na maioria das vezes, se ganha pontos no jogo. Esse timing do jogo, é particularmente brilhante, por estrar totalmente atrelado a outro timing, que é o de construção.
Veja bem, o jogo tem um aspecto muito interessante. Você precisa desenvolver marte e para isso precisa construir coisas, predios que vão produzir planta, agua, oxigenio, etc. Só que você precisa de ter tecnologia para isso. Mas ela não precisa ser particularmente sua. Basta que um jogador tenha pesquisado a tecnologia de uma Estufa de Plantas de nivel 2, para que você possa construí-la, por exemplo. E sabe em Brass, quando você quer vender algodão pro Porto, e constrói 2 Portos numa jogada querendo vender na próxima, apenas para ver seus adversários usarem seu Porto para vender na sua frente e você fica com algodão na mão sem fazer nada? Pois é, aqui acontece parecido. Ao desenvolver tecnologias, você permite que todos os adversários construam algo na sua frente e por isso, o timing tem de ser perfeito. Você pode desenvolver a tencnologia da Estufa nivel 2 apenas para ver seu adversário construindo-a antes de você, e agora, voce precisa de Estufa nível 3 pra fazer a ação que estava planejando. Isso é ainda mais desafiador por que a ação de desenvolver tech fica na órbita e de construir estruturas fica em marte. O jogo então pode se transformar em uma marcação pesada de quando construir e quando desenvolver que eu ainda não tinha visto nos jogos do Vital que joguei. É uma interação que podemos chamar de positiva, pois você ganha algo quando utilizam sua Tech, mas não necessariamente você prefere ganhar esse algo a poder, você mesmo, construir.
Quem me conhece, sabe que eu amo esse tipo de interação e marcação em jogos, pois é isso que traz de volta ao ponto que eu falei sobre me encantar em um jogo pesado: ele me proporciona uma experiencia única? No caso do On Mars, essa mistura de seleção de ação, com a divisão do tabuleiro em 2 áreas separadas e o mecanismo de como se mover entre as duas áreas, aliado ao timing de como pode fazer as coisas, cria uma experiência que EU, nunca tinha vivenciado em outros jogos, e definitivamente, não nos jogos do Vital.

É por isso que, no final, ao analisar a 1a pergunta se fiz, se o custo de tempo para entender, vale o sacrifício, a resposta é sim. Todo o tempo que eu estou aprendendo e jogando On Mars, eu estou desenvolvendo minha capacidade de entender e dominar esse mecanismo interessantíssimo. E como aqui, Vital incluiu uma interação mais presente do que nos seus outros jogos, não basta que eu domine e maximize o modelo matemático de fazer uma máquina de pontos em On Mars, eu tenho que compreender também as interações entre os jogadores, o que torna as possibilidades infinitas.
Vou usar aqui o exemplo de outro jogo de Marte, Terraforming Mars para tentar me fazer mais compreensível. Quem já jogou Terraforming, sabe que o jogo pode demorar mais ou menos de acordo com a maneira que o grupo e os jogadores jogam. Alguns, querem fazer combos gigantes e homéricos, enquanto outros focam em acelerar a terraformação, oceanos e oxigênio para acelerar o fim do jogo. Se você está jogando no longo termo, fazendo um combo daqueles de por no currículo mas a mesa estiver acelerando, provavelmente o jogo acaba antes de você usar seu combo na sua plenitude. Do mesmo jeito, se estiver acelerando sozinho enquanto todos estão construindo uma máquina, você provavelmente será atropelado no final. Ou seja, não basta você ter a fórmula de maximizar seus pontos, você tem que saber como maximizar os pontos NAQUELA PARTIDA, de acordo com o comportamento do resto da mesa.
On Mars tem isso também. O jogo tem várias maneiras de terminar, as quase todas dependem de avanço dos níveis da estação espacial LSS que, assim como em TfM, é feita de forma meio que em conjunto no jogo. E assim como no TfM tem aqueles momentos que se você tiver o timing certo, você maximiza seus bonus, no On Mars também tem os momentos do jogo onde você consegue maximizar seu desenvolvimento da LSS. E isso, depende, quase que exclusivamente, da interação da mesa e de como ela está jogando.
Teve uma partida minha por exemplo, que em 2 horas eu achei que o jogo terminaria e eu parei de tentar fazer algo grande para pontuar de forma rápida que me daria vantagem no curto prazo. Ao perceberem que eu abri mão de ter condições de trigar o fim de jogo para ter mais pontos caso alguém trigasse, os jogadores mudaram sua estratégia, e seguraram o jogo por mais 1h30 minutos para que minha estratégia não fosse mais a melhor naquele momento. E isso, eu tenho certeza, que vai se comportar diferente nas próximas 10x que eu jogar On Mars.
O jogo ainda tem mais uma última coisa interessante que eu queria citar, que é como ele melhorou a ação executiva, criando quase que um Engine Building de ação executiva no jogo. Em On Mars, cada jogador pode fazer 1 ação do tabuleiro e 1 ação executiva por rodada, em qualquer ordem. E existem várias maneiras de se liberar ou adquirir novas possibilidades de ações executivas, mas sempre, só se pode fazer uma (o que é angustiante quando você tem várias boas). Não tem mais aquilo de seguir outro jogador que faz com que os turnos de Lisboa se tornem quase que eternos. Você já escolhe 1 ação, no seu turno e faz. E gente, como elas salvam. Saber casar sua estratégia com quais ações executivas estão disponíveis para você, é essencial no jogo.

Vital Lacerda não é para qualquer um. Não que precise ser um crânio ou gênio para jogar e curtir ele, mas tem que primeiro estar disposto a jogar um jogo que te exaure mentalmente; segundo, ter o tempo necessário para aprender, ensinar e jogar um jogo longo; e terceiro, precisa ter um grupo na mesma situação. Jogar jogos pesados é um investimento de tempo, que nem todo mundo tem, ou está disposto a fazer.
Mas se você tem, se você curte e se tem grupo para isso, eu te digo que On Mars já desbancou Lisboa na minha lista de favoritos do autor, por ter uma variedade de jogo e interação mais alta, do que os demais jogos dele que joguei. Ainda não joguei Vinhos (tá na lista da Vergonha) que todo mundo fala tão bem. Mas depois de ter me decepcionado com Escape Plan, Vital Lacerda acertou na mosca para me reconquistar e me fazer tentar arrumar um espaço ali entre os 20 primeiros na minha lista de favoritos.