Os jogos de tabuleiro são – e assim devem ser! – diversão por excelência, passatempo eficaz, exercício de raciocínio e um lance de sorte. Todos oferecem, conjuntamente, tais aspectos, em maior ou menor grau. Muito antes dos tão decantados euros – que, a exemplo dos alemães, prefiro chamar de “jogos autorais” – eles já existiam. Os mais antigos remontam há mais de 4 mil anos e ainda são atraentes e desafiadores, como o Shen (2100 a. C.), que joguei recentemente e me surpreendeu. A maior característica que difere os jogos atuais dos mais antigos, alguns milenares, é a reunião de mais de duas pessoas em volta do tabuleiro, às vezes 8, 10, 12 ou 100, se for possível controlá-las! Os jogos antigos eram, majoritariamente, para duas pessoas.
Shen (2100 a. C.)
Recentemente, num texto sobre o jogo Jaws (2019), Marcius Fabiani defendeu a alegria, a diversão e o prazer familiares ou entre amigos enquanto jogamos. Ou seja, há uma hora em que o jogo é pura atividade lúdica, de farra mesmo, brincadeira, diversão, passatempo, descontração.
Jaws (2019)
Também defendo isso, como defendo que os jogos sejam diferentes, escapem à monotonia dos cubinhos movidos de um lado a outro rodada a rodada, das cartas que geram recursos, dos objetivos cumpridos para a pontuação final, das inúmeras formas de pontuar que, em muitos casos, conduzem o jogo em ponto de espera, como se todos os jogadores sem exceção pudessem realmente vencer, o que, em geral, é uma ilusão. Por isso aprecio jogos como K2 (2010), Survive (1982) e The downfall of Pompeii (2004), nos quais vencer está condicionado a sobreviver e todos se igualam a todos perante um acontecimento ou um infortúnio.
K2 (2010), Survive (1982) e The downfall of Pompeii (2004)
Afora isso, gosto de jogos em que a aleatoriedade dos dados ou das cartas é a força motriz da experiência lúdica, talvez porque boa parte da minha infância e adolescência foi gasta em família, à volta de uma mesa de baralho. Na minha casa, jogava-se baralho diariamente, depois do jantar. Buraco, Sueca, Escopa, Copas, Mau-Mau etc.
Portanto, é bem natural que eu obtenha prazer e diversão com jogos como King of Tokyo (2011), King’s Gold (2014) e Can’t Stop (1980). Os três nos atiram à sorte dos dados, que, a depender do resultado, nos leva de um polo a outro em poucos minutos: da frustração à alegria, da realização ao fracasso, da vitória iminente à inevitável derrota. E isso sem custos, sem consequências funestas.
King of Tokyo: Dark Edition (2020), King’s Gold (2014) e Can’t Stop (1980)
O jogo de tabuleiro também é um exercício de “vidas”. Um arco psicológico de experiências. Eis um dos motivos por que nos colocamos à mesa, entre pessoas cuja companhia nos honra. Queremos, com elas, diversificar quem somos: para o sucesso ou o fracasso. Depois, findo o jogo, começa-se outro, e a experiência, tanto quanto a diversão, se renova. E segue o baile, que a rigor é a vida.
Depois de um tempo no hobby, comecei a me dar conta de que as opiniões sobre esse ou aquele jogo são sempre relativas, condicionadas a uma experiência. O mesmo jogo que para uns é um suprassumo para outros não passa de um exercício maçante, que, com efeito, não cumpre aqueles aspectos arrolados acima. Qualquer jogo de tabuleiro tem a ver com a pessoa. Ou mesmo com o que ela pensa de si própria e, certo dia, se surpreende gostando de um jogo que, a princípio, repudiava ou que não queria jogar, porque tinha lido isso ou aquilo, ouvido esse ou aquele jogador influente. Entendo porque alguns críticos ou influenciadores evitam opinar sobre os jogos: seus juízos de valor são juízos pessoais, tão subjetivos quanto mais genéricos.
Uma experiência num jogo diz muito do jogador, de quem ele é ou pretende ser enquanto joga. Se o cara quer ser um mestre em Mombasa (2015), eu quero apenas jogar e dar o meu melhor, por diversão, passatempo, exercitando o raciocínio e brincando com a sorte. Inclusive isso nos abdica da obrigação de vencer, estado este que, não raras vezes, nos conduz à vitória, ao bem-estar e regozijo que esta proporciona. Jamais esqueci um ensinamento que absorvi de um livro do escritor americano John Steinbeck: “Não se deve desejar muito uma coisa, isso às vezes afugenta a sorte”. Nas vezes que desejei a todo custo vencer, perdi; nas vezes em que joguei quase por descaso, venci. Há um quê de ironia naquilo que está no fim do horizonte.
Mombasa (2015)
Já deixei de jogar alguns jogos porque ouvi certos conselhos, oriundos de uma experiência que necessariamente não seria a minha; já deixei de jogar outros porque a mecânica ou o tema não me agradavam. Se eu, no momento, pensasse naqueles aspectos com os quais iniciei esse texto, eu os teria jogado e talvez tivesse me surpreendido, como já aconteceu algumas vezes. Mas, ainda que a experiência em si me decepcionasse, não seria o jogo o maior responsável. Seria, ao mesmo tempo, tanta coisa e nenhuma, que melhor seria relevar a experiência. E ir para outro momento, outro jogo.
Acho que devemos sim jogar e adquirir jogos pelo tema ou pela mecânica de nossa predileção; pelo grau maior ou menor de sorte ou raciocínio que eles envolvem; por oferecerem diversão garantida ou preencherem com eficácia o nosso tempo livre. São todos motivos justificáveis e de equiparado valor. O que devemos ter em mente é que predileções são portas de entrada; a saída pode, mais talvez que a própria entrada, ser a grande surpresa. Saí de Azul, King of Tokyo, Gnomopolis, Parade, Marrakech, Man at Work, Arraial e Puerto Rico tão fascinado quanto entrei em K2, Gold West, Carcassonne, Power Grid, The downfall of Pompeii, Miguel Strogoff ou Segundón. Estes me atraíam por algum aspecto de minha predileção; aqueles, por nenhum. Mas, ao fim, lá estão eles em destaque, lado a lado. E ganharam os jogos, e ganhei eu, que os joguei.
Mayrant Gallo é professor, escritor, boardgamer e sócio da Invasion BG. Já publicou mais de 15 livros. Entusiasta por jogos de tabuleiro, tem predileção por jogos para 2 pessoas e solo. Tematicamente, aprecia jogos de construção de cidades e sobre a Guerra Fria. Entre as mecânicas de que mais gosta estão: colocação de peças, construção a partir de um modelo, seleção de cartas, controle de área e gestão de mão.
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