À primeira vista, Stone Age (2008), de Bernd Brunnhofer, se parece com outros jogos. Lá estão, por exemplo, a madeira, a pedra e o tijolo, recursos presentes em Catan. Tudo bem, em 3D, palpáveis, quando em Catan são só cartas. Igualmente o cenário remete a outros jogos: um mundo pré-histórico, trabalho intenso e diário no campo de caça, na pedreira, na mata, na olaria, no rio, na colheita, na oficina de ferramentas. Os jogadores mandam para lá seus meeples, que representam membros de uma tribo primitiva, e estes trabalham, trabalham, quase que exclusivamente para comer. Não há outro propósito. Durante e ao fim de cada rodada, os jogadores pontuam, aumentam seus recursos, adquirem cartas (decisivas para a vitória ou derrota), aumentam seu acervo de ferramentas.
Passeando por qualquer site de boardgames, ou mesmo por uma coleção privada, não são poucos os jogos que apresentam cenário, contingência e componentes semelhantes aos de Stone Age. Então o que o difere de seus êmulos e concorrentes? Não sei ao certo, eu teria que ter jogado mais jogos do que uma existência comum permitiria... Portanto, me limitarei a comentar aquilo que em Stone Age me parece uma evidência de sua qualidade e fascínio exercido sobre os jogadores.
Primeiramente, muito embora longo – em média 90’ –, é um jogo fluido e atraente: sentimos prazer de cumprir todas aquelas obrigações cotidianas que, na vida, seriam cansativas e enfadonhas. Não creio que constitua nenhuma diversão cortar madeira, moldar tijolos, quebrar pedra, forjar ferramentas, cultivar. No entanto, muitos jogos modernos se limitam a isso e são admirados, entre os quais Stone Age. Arrisco cogitar que, dessa forma, o jogo resgata em todos nós certo sentimento perdido da infância, quando, nas brincadeiras, simulávamos o mundo adulto e nos divertíamos. Adultos, já não podemos fazer isso, pois pareceríamos lunáticos; imaginem: um adulto brincando de ser adulto... Mas, no jogo, isso é perfeitamente plausível. Estamos jogando, não há nenhuma estranheza nisso. É um jogo, mas é também uma brincadeira. Em seu ensaio O poeta e seus sonhos diurnos, Freud afirma que os artistas prolongam na arte as brincadeiras da infância. Como eles não podem mais brincar, eles criam. Nós, boardgamers, fazemos o mesmo. Em Stone Age, durante 90 minutos, imersos num sonho acordado, brincamos de trabalhar num mundo primitivo, e ninguém acha isso estranho, porque afinal é um jogo! Mas lá estamos, como crianças: rindo, nos divertindo, sendo homens e mulheres remotos num mundo remoto. Em suma, através desses jogos de simulação do trabalho diário, voltamos à infância perdida e irrecuperável, de quando brincávamos, nos projetando numa realidade diversa da nossa, e disso extraímos prazer, diversão.
Outro aspecto altamente positivo de Stone Age é a sua “cabaninha do amor”. A cada rodada, podemos colocar dois membros de nossa tribo na cabana e, ao fim da mesma, teremos um novo rebento. Outro futuro trabalhador, já ativo na rodada seguinte e que, a despeito de seu esforço maior ou menor nas atividades referidas acima, deverá ser alimentado, como todos os demais. Uma representação mais do que evidente do mundo adulto, com sua porção se amor e sexo, que, afinal, impulsiona a vida, renova-a e diversifica. A cabaninha do amor é um dos charmes de Stone Age! Ao mesmo tempo criativa e sutil, coerente e imprescindível. Deve, talvez, passar despercebida para alguns jogadores, imersos na funcionalidade do jogo, mas, para outros, é o suprassumo da novidade e do humor. Um diferencial decisivo. Inclusive, numa partida entre dois jogadores – casais, digamos –, cada um pode colocar seu meeple lá simultaneamente, juntos, sem jamais removê-los ao longo da partida, e a cada rodada nasceria um rebento para um ou outro, alternadamente: na ímpar para um, na par para o outro. Uma regra interna que muito enriquece o jogo e que, no plano da diversão e da comicidade, aprofunda-o e o renova, pois, qualquer que seja o jogo, o propósito é sempre o prazer, a diversão: transpor alguns minutos ou horas deste nosso tempo incauto numa atividade benéfica e sem danos.
Demorei a jogar Stone Age, mas quando o fiz foi para incluí-lo na minha lista de favoritos. Há outros méritos a ressaltar, mas seria de natureza mais técnica, sobre sua mecânica (o quanto é estratégico e pouco dependente da sorte) ou sobre a beleza dos seus componentes, sua arte visual, bem como sobre seu funcionamento como jogo em si, de sua categoria, mas isso outros já fizeram e consta do manual. Ser capaz de nos fazer “trabalhar e amar” num mundo primitivo, projetando um sonho acordado como na arte, é talvez o seu maior mérito. Há mais em alguns jogos, como representação, do que pode nos oferecer a vida comum, muitas vezes estreita e solitária.
Mayrant Gallo é professor, escritor, boardgamer e sócio da Invasion BG. Já publicou mais de 15 livros. Entusiasta por jogos de tabuleiro, tem predileção por jogos para 2 pessoas e solo. Tematicamente, aprecia jogos de construção de cidades e sobre a Guerra Fria. Entre as mecânicas de que mais gosta estão: colocação de peças, construção a partir de um modelo, seleção de cartas, controle de área e gestão de mão.
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