O fato de Cartógrafos (2019), de Jordy Adan, ter sido indicado, com méritos, a um dos mais prestigiados prêmios do mundo dos board games modernos abre um horizonte que já há alguns anos vinha se delineando: a projeção efetiva dos jogos brasileiros.

Há tempos que eu queria escrever sobre alguns jogos nacionais… Mas faltava, talvez, estímulo, pois, volta e meia, lia aqui na Ludopedia comentários pouco animadores sobre jogos que, de minha parte, eu tinha jogado e considerado de boa qualidade – pelo menos. Tais comentários, ao passo que me desestimulavam, me faziam refletir que, por um acaso que não é realmente um acaso, mas evidência ou resquício daquilo que Nelson Rodrigues chamou de “complexo de vira-lata”, conservamos certa tendência a diminuir tudo que é nacional em favor do que é estrangeiro. Por mais que encontremos justificativas para isso, precisamos buscar avaliações que não incorram neste erro, tanto quanto não reproduzam o inverso, elogiando o jogo nacional tão somente porque é nacional.
Posto isto, me pergunto: como ficamos, agora, que um jogo brasileiro se alinha a outros de reconhecida qualidade na disputa de um renomado prêmio? Acho que devemos tirar proveito desta situação e jogar mais os nossos jogos. É o momento de, por orgulho e bom senso, nos valorizarmos. Eu mesmo pretendo em breve escrever sobre o Cartógrafos, mas, enquanto isso, até mesmo por fidelidade ao meu propósito anterior, decidi escrever sobre alguns jogos que, por muitos motivos, deveriam ser mais considerados. Ao vencedor as batatas, como diria Machado de Assis.

Recicle (2010), de Luish Moraes Coelho. Este é talvez o mais antigo dos jogos arrolados aqui. Reúne ao mecanismo típico dos jogos autorais europeus um tema sério e pouco explorado: a reciclagem de lixo urbano. Só o fato de estabelecer este tema, que flui naturalmente durante as partidas, já era motivo para se exaltá-lo. Mas é muito mais que isso: é um jogo econômico, de acirrada disputa. A trilha de pontuação, que é também um complexo marcador de “riqueza”, é tão engenhosa quanto a esteira de oferta e procura do Power Grid. Recicle é um jogo que segue por merecer uma nova edição, com arte renovada e intenções bem mais ambiciosas. Sua inquestionável qualidade reclama por isso.

Dogs (2013), de Marcos Macri. Quando joguei este jogo, não hesitei em sentenciar: “Surpreendente e original, um belo eurogame brasileiro! O Marcos Macri merece os mais festivos cumprimentos pelo excelente espécime que criou. Uma joia em todos os aspectos”. Não creio ter exagerado, pois, se queremos jogar um jogo do tipo europeu, com tudo o que este gênero de jogo criou, consolidou e aprimorou, e ainda mais que traga um tema atraente e pouco explorado – a recolha de cães abandonados com vistas a fazer com que sobrevivam –, Dogs é o jogo. Diverte, impõe disputa, cria novos horizontes para o hobby. Uma ótima porta de entrada, eu diria.

Blacksmiths Brothers (2016), de Nicholas Paschalis. Jogo elegante e discreto, mas muito divertido. Sofre a pecha de parecer com Stone Age, argumento que certos jogadores usam para diminuí-lo. Ora, se parece apenas enquanto mecanismo, pois predominantemente usa alocação de trabalhadores, mas, afora isso, são jogos bem distintos, tanto em tema quando em evolução. Somos ferreiros disputando um suposto concurso para nos tornarmos os favoritos do rei, seus ferreiros oficiais. Ao passo que avançamos no fluxo do jogo, o rei segue em sua jornada de visitas aos lugares específicos que servem aos ferreiros, como se pessoalmente os avaliasse e inspecionasse. A jornada do rei é, a um só tempo, brilhantemente, o desenvolvimento do tema e o marcador de rodadas, pois, quando ele finalizar seu périplo, o jogo se encerrará. Em vários aspectos é um jogo excelente, com tema e mecânica em estado de harmonia. Outro pormenor favorável, embora à margem do jogo, é a qualidade do manual, muito bem redigido e explicativo, coisa rara por aqui.

Os Incríveis Parques de Miss Liz (2018), de Diego de Moraes. Foi o vídeo de regras do Romir Paulino que me chamou a atenção para esse jogo. Durante a minuciosa explicação, pude perceber que, apesar da evocação de família feliz da ilustração da caixa, num passeio dominical ao parque, não era um jogo inocente. A construção do parque temático ideal exige um planejamento criterioso, com vistas a aprimorá-lo, de modo que o seu funcionamento, a cada rodada, gere renda e contribua para a pontuação. Ou seja: as escolhas levam à produção de dinheiro, que permite melhorar o parque e, assim, pontuar bem, ao final. É um jogo de elaboração visual produtiva, como Kingdomino e Barenpark. Mas tem a sua originalidade, seu próprio aspecto e ritmo. Em suma, um ótimo jogo.

Warzoo (2014), de Fel Barros. Jogo para dois jogadores, em duas opções de embate, uma mais simples e outra mais complexa. É uma adaptação livre do argumento do romance “A revolução dos Bichos”, de George Orwell. A concepção do jogo, num território bipartido, com cada jogador de um lado, é visivelmente inspirada em dois jogos do Reiner Knizia, o que não tira, de forma alguma, o mérito do Fel Barros. Jogo de valor, muito bom de jogar e que, no seu fluxo, sempre permite que o jogador que está atrás reaja por méritos próprios, e não apenas por erro do adversário. Uma excelente opção de jogo exclusivo para dois.

Crop Rotation (2018), de Eduardo Guerra. Jogo interessante e, a meu ver, bem original. Percebemos a influência benéfica de outros jogos, mas ainda assim não deixamos de apreciá-lo; na verdade, ocorre um efeito contrário: lhe damos mais crédito. Mescla, com rara eficiência, tema e mecânicas, resultando num jogo elegante e prazeroso. Oferece ainda a possibilidade de se jogá-lo cooperativamente, o que nos força exaltá-lo como um excelente jogo para toda a família. O autor revelou publicamente que a origem do jogo adveio de uma problematização do elementar Jogo da Velha. Ora, esta é mais uma evidência de que ótimas ideias surgem frequentemente de uma concepção simples do que está à nossa volta.

A Conta da Copa é Nossa (2014), de Guilherme Cianfarani. Esse é um jogo polêmico. E talvez por isso adquiri meu exemplar – em excelente estado, aliás – a preço de banana. Reitero o que disse tempos atrás, quando o joguei pela primeira vez: “Excelente jogo. Irônico, sarcástico, crítico. Transforma em pilhéria um dos eventos mais idiotas que o Brasil já realizou: a Copa do Mundo de Futebol de 2014. Um jogo cuja mecânica expressa o que é o seu tema: volta e meia os jogadores, como os personagens do jogo (políticos, governadores, ex-jogadores de futebol, artistas, jornalistas, empresários), puxam o tapete uns dos outros. Palmas para seu criador pelo engenho e pela ousadia”. Merecia uma sorte melhor, mas, como se restringe a um evento esportivo específico, que, por sinal, o Brasil preferiria esquecer, ficará datado, sem possibilidade alguma de novas edições e, aos poucos, se tornará uma relíquia. É daqueles jogos que são publicados e jamais retornam.

Deterrence 2X62 (2016), de Paulo Santoro. Um jogo magistral para dois jogadores. Pega a Guerra Fria e a contextualiza no futuro, conservando a bipolaridade das duas potências, EUA e URSS, ainda às turras pela dominação do mundo. No tabuleiro criado a partir da disposição das cartas (belíssimas!), temos de um lado as cidades armadas até os dentes do bloco liderado pela URSS, e do outro, as do bloco dos EUA, armadas à altura para o Holocausto Nuclear. Através das cartas, os jogadores voltam seus mísseis para o território inimigo, ao passo que se protegem, em busca de uma vitória que se dará no jogo, mas que, na evocação temática, representará o fim do mundo. É notável como um tema histórico tão assustador pôde ser reduzido a uma estrutura tão elementar e eficaz. Considero esse jogo uma obra-prima, em todos os sentidos. Mas, infelizmente, tudo conspira para que seja ignorado e, afinal, esquecido. Uma pena.

Gnomopolis (2018), de Igor Knop e Patrick Matheus. Esse era um jogo pelo qual eu não tive inicialmente nenhum interesse. Em especial pelo tema, que não aprecio. Duendes, gnomos, fadas, elfos, bicho papão etc., tudo isso ficou lá na minha infância, e raros são os jogos com essas figuras que possam talvez me atrair. Mas eu estava num evento, e o jogo estava lá, à disposição para quem quisesse jogá-lo. Pois joguei e o apreciei muito. Não vou entrar em detalhes, pois posso me tornar cansativo; direi apenas que, por questões pessoais, às vezes deixamos de jogar bons jogos e, por isso, é necessário, de vez em quando, nos desnudarmos de certas convicções férreas em favor de novas experiências lúdicas. Gnomopolis foi uma das melhores surpresas para mim, ao praticar tal exercício.

Pit Crew (2017), de Sandro Tomasetti. Este jogo brasileiro tem um homônimo muito parecido e publicado no mesmo ano. Talvez uma dessas inexplicáveis coincidências presentes em qualquer campo do conhecimento, da arte e da cultura. Se não for coincidência, que os leitores me desculpem por não me aprofundar no assunto; não era este, afinal, o meu objetivo neste texto. A verdade é que apreciei muito esse jogo e sempre o recomendo. A mecânica é a mesma do Adios amigos (2009), do Momo Besedic, mas o Tomasetti a deixa mais complexa e cria um frenético jogo de raciocínio matemático, agilidade mental e rapidez com as mãos. O cenário criado enquanto jogamos é, a um só tempo, de caos e ordem, o que encerra um paradoxo difícil de administrar, mas efetivamente desafiador. E percebemos, sem embargo, o quanto é estressante a jornada daqueles mecânicos, durante as corridas de automóveis, que possuem só alguns segundos para fazer o que devem fazer, com os pneus, o motor e tudo o mais. Um jogo brilhante, que promove em nosso ânimo os efeitos de uma Segunda Experiência, que consiste em nos colocar em contato, por similitude de representação, com o núcleo essencial do tema do jogo.
Julgo ter cumprido o que prometi. Trouxe à tona alguns jogos brasileiros bem diferentes entre si e pelos quais tenho admiração e que espero, com meus comentários, despertar para o interesse de outros jogadores. Temo sinceramente que a maioria desses jogos em alguns anos não seja senão uma imagem esfumaçada na memória de algumas pessoas, uma vez que é fácil perceber que o jogo de tabuleiro brasileiro ainda é tratado com reservas, quando não com desdém e sarcasmo, o que é plenamente comprovado por alguns comentários aos quais temos acesso. Todavia, torno minhas as palavras do escritor argentino Ricardo Piglia: se um único leitor tira proveito de um determinado livro, a existência desse livro, tanto quanto a de seu autor, está justificada. Com os jogos de tabuleiro não será diferente. Se dois ou três jogadores os jogaram, se divertiram e desejam repetir a experiência, eles continuarão vivos, ainda que venham a desaparecer. Como tudo, aliás.

Mayrant Gallo é professor, escritor e boardgamer. Já publicou mais de 15 livros. Entusiasta por jogos de tabuleiro, tem predileção por jogos para 2 pessoas e solo. Tematicamente, aprecia jogos de construção de cidades e sobre a Guerra Fria. Entre as mecânicas de que mais gosta estão: colocação de peças, construção a partir de um modelo, seleção de cartas, controle de área e gestão de mão.
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