Certa vez li um comentário em algum lugar das internets da vida que dizia o seguinte a respeito de uma coleção de jogos: no início a gente compra qualquer coisa, porque não sabe o que gosta e, passando o tempo, você aprende o que gosta e passa a comprar qualquer coisa daquilo. Talvez isso seja axiomático demais, todavia bem se aplica a mim. Muito rapidamente eu entendi o que gosto nos jogos de mesa – jogos com relativamente pouca interação, gestão de recursos e que ofereçam bons puzzles de otimização com bastante variedade. Daí vem meu gosto pelos jogos do Uwe,
Imperial Settlers,
Projeto Gaia e outros tantos. Há, claro, exceções à regra, mas boa parte de minha coleção vai nessa linha. Eu achei que o jogo de hoje iria nessa linha, mas fui surpreendido pelo que encontrei.
Alguns designers, todavia, subvertem as fórmulas mais tradicionais com propostas mais autorais e ousadas, ideias essas que nem sempre são abraçadas por grandes conglomerados editoriais, mas que encontram espaço em editoras menores. Dávid Turczi é um desses caras. Inicialmente muito associado à Mindclash, que trouxe alguns títulos de muito peso ao mercado (ex.:
Trickerion,
Anachrony), ele descolou um pouco sua imagem dessa empresa e fez alguns jogos muito peculiares, como
Days of Ire: Budapest 1956,
Nights of Fire: Battle for Budapest,
Kitchen Rush e, esse que é motivo da resenha de hoje,
Dice Settlers. Ele também desenvolveu modos solo para jogos de outros designers, como
Teotihuacan: City of Gods e
Snowdonia: Deluxe Master Set, que tem review por
aqui. Se alguém tiver a curiosidade de conferir minha coleção, verá o quanto eu gosto do trabalho dele.
Em busca de um dice game perfeito, Dávid se perguntou: e se
Quarriors! fosse bom? Com isso ele criou Dice Settlers, um jogo que lista como mecânicas o controle de área, pool building (nesse caso com dados), rolamento de dados e tile placement. Embora descrito como um jogo de civilização com pool building, obtenção de recursos e controle de área, esse jogo é tão jogo de civilização quanto
Tapestry, ou seja, não é nada disso. Ele faz uso de uma temática de colonização, exploração territorial e controle de área, mas o tema, ainda que razoavelmente integrado às mecânicas, não é a coisa mais exuberante do mundo.
Uma coisa da mecânica que eu gostei demais nesse jogo foi o uso das cartas de tecnologia. A cada jogo, 8 delas são sorteadas de alguns baralhos diferentes, que possuem cartas cujos efeitos são bastante distintos entre si. Umas focam em ampliar a eficiência e versatilidade de ações, enquanto outras fornecem pontos adicionais no fim da partida. Tive muitos
Agricola/
Um Banquete a Odin feelings enquanto jogando.
Cartas de tecnologia, que acrescentam um tchan ao jogo!
Os componentes do jogo são de ótima qualidade! A NSKN vem produzindo jogos excelentes há algum tempo. As cartas tem boa gramatura, os playerboards, ainda que fininhos, são funcionais e não se precisa de mais do que eles oferecem. Eles ainda tem uma coisa muito boa que é uma colinha das ações possíveis para o jogador e um lembrete da ordem do turno. Eu consegui uma cópia usada da edição deluxe do Kickstarter, mas esse é um raro caso em que eu não me impressionei nada com uma versão superior. O que ela traz a mais são os recursos realistas e as tendas/casas especiais. Os recursos são muito legais, mas as tendas/casas não acrescentam muito e são pouco funcionais. Os tiles tem boa qualidade, assim como os dados customizados.
Setup do jogo solo.
Tiles do jogo.
Dados customizados.
Playerboard e componentes do jogador.
Uma coisa que poderia ser melhor é o manual de regras. Está tudo ali, tudo explicado, mas poderia ser melhor. À primeira lida, tive uma sensação muito semelhante à que tive quando li o manual do Mage Knight e depois descobri que o editor de regras era o Paul Grogan, que também editou o do
Mage Knight. Não sei dizer ao certo o que eu não gosto, talvez seja a organização dos conceitos e o lay-out, mas talvez seja só eu mesmo.
O modo solo, que é o que me interessava, acrescenta alguns poucos componentes e tem suas regras descritas na segunda metade do manual. Quanto a isso, eu tenho duas coisas a criticar negativamente. Em primeiro lugar, o modo solo merecia um manual separado com mais detalhamento a respeito das ações do bot, como se fez para o Projeto Gaia, por exemplo. Há alguns pontos que suscitam dúvida e é frequente que tenhamos que recorrer ao sacrossanto BGG. Em segundo lugar, da mesma forma que para o jogador, o bot devia ter um playerboard que sumarizasse suas ações e, todos os componentes adicionais que ele usa, poderiam estar impressos ali sem nenhum prejuízo para a experiência de jogo. Eu voltarei a isso a seguir, mas esse modo solo requer ajuda, tanto que, além de confeccionar um resumo próprio para as regras, imprimi as cartas de ajuda que vocês conseguem ver na foto, também disponíveis no BGG.
Cartas de ajuda, impressas diretamente do BGG.
A barreira de entrada para esse modo solo é considerável, pois as regras são relativamente complexas, em particular para duas ações – as de colonizar e as de invadir. Em termos de dificuldade, ele me lembra bastante o modo solo do Scythe. Demorei algum tempo para entender tudo, lendo e relendo o manual, resumindo as regras, jogando errado, assistindo vídeos e por aí foi, até que peguei o jeito da coisa. A partir do momento em que entendi como funcionava, o jogo foi de embalo. Foram 11 partidas consecutivas em poucos dias, o jogo literalmente ficou montado na minha mesa esse tempo todo. Ainda preciso consultar as regras para essas ações, mas ficou rápido.
No início de cada turno, rolamos um determinado número de dados do bot conforme a quantidade que ele possui e os colocamos em torno de um rondel de ações dele. As ações do bot são, a seguir, determinadas pelo rolamento de um dado de 6 faces especial (faces 1, 2, 2, 3, 3 e 4). Ele replica bem a forma como os jogadores interagem e não tem uma manutenção muito complexa, o que o torna bastante funcional! O único senão é mesmo a dificuldade para aprender como tudo funciona. Sua pontuação final tem algumas pequenas diferenças em relação à do jogador, só que isso sequer chega a ser problema. Das minhas 11 partidas de verdade, a pontuação do bot oscilou em torno de valores mais ou menos regulares, de modo muito semelhante ao que ocorre com os modos solo da Automa Factory, o que dá uma boa sensação de adequado escalonamento de dificuldade.
Componentes adicionais do modo solo.
Joguei, até aqui, 13 partidas completas, sendo que duas delas foram para aprender a jogar. Depois de ter entendido, joguei várias vezes, tentando estratégias diferentes e caminhos alternativos para pontuação e cheguei a algumas conclusões.
Aspecto final de uma partida solo.
Mapa no fim da partida solo, vencida por mim por 75 a 72.
O jogo é extremamente variado e você tem vários caminhos possíveis para a vitória. A rejogabilidade, pois, é infinita. Ele tem muitas coisas que me lembram os jogos do Stefan Feld, mas também muitas coisas que me lembram os jogos do Uwe Rosenberg, num sentimento semelhante ao que o
La Granja me traz. Coincidentemente, também outro euro com dados.
Uma outra conclusão, aqui o calo do jogo solo, é que fiquei com a nítida impressão de que há uma estratégia vencedora – criar uma barreira para a expansão do bot e aumentar seu território rapidamente, enquanto construindo casas. Fiz isso em 3 partidas e foram meus melhores resultados contra o bot. Como ele não é inteligente, isso é, não se adapta ao estado do jogo, você consegue ditar o ritmo razoavelmente. É bem diferente do que ocorre, por exemplo, com o Chronobot do Anachrony, também do Dávid Turczi, ou com os bots dos COIN. Tenho muito cuidado ao dizer que um determinado jogo possa ser quebrado, mas ter notado isso me preocupou bastante. Preciso jogar mais vezes, testá-lo no modo multiplayer e ver como isso se comporta em outros contextos.
Dice Settlers tem muito mais coisas boas do que coisas ruins. É um bom jogo, com componentes de excelente qualidade e que oferece bastante variabilidade, caminhos diversos de pontuação e muitas opções táticas e estratégicas. Seu modo solo é bem desenvolvido e replica bem a interação entre os jogadores, ainda que com uma curva de aprendizado considerável. Tenho bastante expectativa com a expansão Western Sea, que traz 4 novos módulos, dos quais 3 são 100% compatíveis com o bot. Acho que ela trará muito tanto para o solo quanto para o multiplayer. Ela foi lançada em Essen no ano passado, mas ainda não consegui uma cópia. Dou notícias quando a minha chegar.
Por fim, fiquem de olho nos trabalhos do Dávid Turczi. Trata-se de um designer que cresce jogo a jogo, propondo ideias que não replicam fórmulas consagradas, mas sabidamente contemplam o que já foi feito em suas searas. É um designer versátil, que lida bem em diferentes frentes temáticas e mecânicas e que não está temendo ousar. Cedo ou tarde ele irá errar, mas, nesse caminho, ele irá acertar tanto que já o perdoo por antecipação.
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