Muitas vezes me pergunto o que faz com que um jogo de tabuleiro possa ser interessante para alguém. Às vezes um tema, por outras a mecânica, eventualmente os componentes ou, talvez, o puro colecionismo, traduzido na vontade de ter vários jogos de um mesmo tema, autor, mecânica e por aí vai. No caso de Snowdonia, além de motivos estritamente pessoais, meu interesse partiu do tema e da boa implementação do modo solo, mas cresceu muito depois disso por uma série de motivos que explicitarei adiante.
Em
Snowdonia, os jogadores representam companhias responsáveis pela construção da linha férrea que percorre o monte Snowdon até seu cume. O nome Snowdonia refere-se a uma região montanhosa no noroeste de Gales, na qual está o referido monte. É um jogo de alocação de trabalhadores rosenberguiano, com poucas ações e opções de ações por turno, daqueles bem apertados. Há alguns aspectos interessantes em sua mecânica, que incluem as cartas de contrato, a influência do tempo (no sentido climático) e os eventos.
As cartas de contrato são um dos pontos mais altos. A cada turno, três delas estão disponíveis para compra através de uma das ações possíveis. Elas tem múltiplos usos, mas os principais são: fornecem objetivos a serem cumpridos que se convertem em pontos ao fim do jogo e modificam algumas das ações dos trabalhadores, em geral tornando-as mais eficientes. Ao fim do turno, uma das cartas é descartada e pelo menos uma nova carta é revelada. O verso dessas cartas possui um símbolo que modificará o tempo nas rodadas seguintes, conforme explicarei abaixo.
O tempo, no sentido climático, como disse acima, tem muita influência no jogo. Você pode ter três situações, que são o tempo ensolarado, que favorece as ações de escavação e colocação de trilhos, o tempo chuvoso, que dificulta as mesmas, e a neblina, que impede as duas ações. O tempo pode mudar de uma rodada a outra e você tem a previsibilidade das próximas duas rodadas conforme os tokens que ficam revelados no tabuleiro. Isso dá uma outra dimensão estratégica ao jogo, fazendo com que você precise planejar suas ações para aquela rodada e para as próximas visando à máxima eficiência. Não chega a ser uma aleatoriedade que incomode, mas dá mais variedade e impõe alguns desafios interessantes.
A última parte interessante é a dos eventos. O jogo conta com quatro recursos, que são pedra (
stone), minério (
ore), carvão (
coal) e entulho (
rubble). Desses, o entulho só pode ser obtido através da ação de escavação. Os outros três são obtidos através de uma ação de procura ativa de recursos. Durante a partida, esses três recursos ficam armazenados num saco preto juntamente com cubos de cor branca que representam eventos. Ao fim de cada rodada, conforme o número de jogadores, você retira do saco preto uma quantidade de cubos e deixa-os disponíveis no tabuleiro para quem quiser fazer a ação de coleta de recursos. Neste momento, caso você saque um cubo branco, ocorre um evento conforme um track disponível no tabuleiro. Esses eventos representam uma outra empresa competidora dummy que apressa o jogo e dificulta a partida para todo mundo. É muito interessante a dinâmica que isso traz, pois força o jogador a se preparar para um imprevisto possível. Novamente, da mesma forma que a influência do tempo, isso implica em variedade sem haver aleatoriedade que remova a agência do jogador.
O modo solo original era uma reimplementação das regras do jogo multiplayer com mínimas mudanças no setup e no gameplay resultando em um bom beat your own score. Não havia nenhum antagonismo ativo da forma como um automa ou um bot fariam, mas toda a sistemática do jogo era bastante compatível com o jogo solo, pois embora houvesse competição entre os jogadores, a adição dos cubos de eventos modificava isso consideravelmente. Aliás, no jogo solo tradicional, os eventos eram uma parte importante. Os recursos são um pouco mais escassos, o que fazia com que a proporção cubos de eventos:cubos de recursos fosse muito maior. Essa talvez seja a principal diferença do jogo multiplayer a meu ver.
Bom, agora que já falei um pouco do gameplay e dos pontos que merecerem destaque, faço um pause para falar um pouco do produto Snowdonia. Há mais para se falar a respeito do gameplay adiante, portanto resistam firmes na leitura.
Lançado em 2012 via Kickstarter, por uma parceria da Suprised Stare Games (empresa do Tony Boydell, o designer do jogo) e da Lookout Games, Snowdonia foi muito bem recebido pelo público. Só que essa primeira edição se esgotou muito rapidamente e a procura foi grande. Houve um reprint em 2013 por outra editora, a Indie Boards & Cards, que trouxe a polêmica substituição dos peões de madeira que representavam os trabalhadores e o surveyor da primeira edição por miniaturas de plástico. Uma heresia para o eurogamer! De lá para cá não houve mais nenhuma reedição e esse jogo chegou a ser vendido por mais de 100 dólares no Geekmarket do BGG.
Entre 2012 e o tempo atual, Tony Boydell, o designer do jogo, lançou incontáveis promos, mini-expansões, cenários e sabe-se lá o que mais em eventos como as feiras de Essen e a UK Games Expo. No BGG estão listadas 27 dessas, mas acho que deve ter sido mais que isso. No seu blog pessoal, vez por outra, ele colocava uma carta nova para print’n’play por quem quisesse. Enfim, o jogo cresceu para tornar-se uma hidra incontrolável de zilhões de cabeças. Mesmo o maior colecionador do mundo não era capaz de ter todo o conteúdo publicado já disponibilizado.
Em 2018, através de uma parceria com a NSKN, todo o conteúdo de Snowdonia foi compilado e lançado através de um Kickstarter para a edição
Deluxe Master Set. Além de trazer todas essas muitas expansões, o jogo teria uma série de melhoras cosméticas, como novos meeples e marcadores, novos cenários e cartas pelo próprio Boydell e outros designers convidados. Para se ter uma idéia do quanto de conteúdo a mais que há nessa edição, o jogo base original tinha 66 cartas, podendo, com as expansões menores, chegar a cerca de 250. O Deluxe Master Set traz nada menos do que 726 cartas. Além de ter uma versão definitiva do jogo, o que mais me interessava era uma inovação que estava prometida: um modo solo desenhado por David Turczi (
Anachrony,
Teotihuacan: City of Gods,
Dice Settlers).
Acompanho o blog pessoal do Boydell no BGG há anos. Adoro o estilo ácido e debochado dele. Em comum, temos a paixão pelos jogos do Uwe. Logo que ele ventilou o advento desse relançamento, fiquei vidrado. Espreitando o mercado da Ludopedia, depois de muito batalhar, havia conseguido uma cópia da herética edição de 2013 por um bom preço. Joguei até cansar de jogar, adorei o Snowdonia e sua variabilidade. Logo que soube da notícia da nova edição, negociei a minha cópia sem muito problema, quase no mesmo preço que havia pagado antes.
Finalmente, quando foi lançado o novo KS, foi um banho de água fria saber que não haveria entrega no Brasil, como tem sido a tônica recentemente. Uma grande decepção. Iria trazer o jogo para cá de qualquer forma, fosse através de um site de redirecionamento, comprando uma cópia no Geek Market depois, mas iria trazê-la, afinal eu havia vendido um jogo que eu gostava muito na esperança de uma edição revisada.
Foi aí que descobri que renovei minha esperança na humanidade.
Como seguia o jogo no BGG, recebi a notificação de um sem número de pledges em grupo, um dos quais de Toronto, coordenado por um cara chamado Peter. Eu tinha uma viagem de trabalho programada lá na ocasião da entrega do KS. Totalmente sem esperança de ser aceito, entrei em contato com o Peter e perguntei se ele se importaria em me incluir. Eu ficaria responsável pela retirada da cópia e, se o KS atrasasse, pagaria o envio para cá e quaisquer despesas nas quais ele incorresse para viabilizar isso. O cara foi nota 10! Pelo fato de ter entrado na compra coletiva de mais ou menos 60 cópias, o jogo saiu pela bagatela de 40 dólares. O KS logicamente atrasou, eu não fui para Toronto e me ajeitei com ele para receber o jogo via correio. No final das contas, acabou saindo meio caro por causa do envio de uma caixa muito pesada, mas deu tudo certo e o jogo chegou aqui em casa sem nenhum arranhão.
Abaixo seguem as fotos do Deluxe Master Set, num canhesto unboxing em fotos.
Eu fiquei embasbacado com o conteúdo da caixa, foi um unboxing orgásmico. Tinha jogo para a vida inteira. Todos os cenários, trens extras, um sem número de mimos e tudo com um acabamento impecável. Embora eu estivesse inflamado pela grande excitação daquela edição primorosa de um jogo que eu adorava, de tudo aquilo, o que mais me atraía era justamente o novo modo solo, chamado de Botdell pelo David Turczi. A partir de sua incorporação, o modo solo beat your own score do jogo original passou a ser considerado uma variação, um
training mode, enquanto o novo modo solo ofereceria o que era considerado a melhor experiência.
Para jogar contra o Botdell, o jogador monta um setup para 2 pessoas e dá algumas peças de outra cor para o bot. Você coloca algumas cartas abaixo do tabuleiro que permitirão a seleção das ações dele e, na vez do Botdell, você rolará um dado que determinará qual ação ele executará naquele turno. Um marcador irá caminhar na trilha, de modo que as ações evoluirão ao longo da partida, num sistema dinâmico que lembra o do Anachrony. O Botdell faz tudo que um jogador faz, mas sua pontuação é calculada de forma bem diferente. Dessa forma, diferentemente do modo solo original, o novo oferece competição ativa para o jogador. Ele ainda não é compatível com todos os cenários, mas com alguns dos melhores, de modo que aproveita-se muito do conteúdo da caixa mesmo só para o modo solo.
Eu já conhecia bem o
training mode de Snowdonia e, embora haja uma curva de aprendizado considerável para manusear-se esse bot, ele funciona incrivelmente bem. Um dos usuários do BGG fez um fluxograma para as ações dele, que eu adaptei para cartas, que vocês conseguem ver na foto.
Configuração do setup inicial para um jogo contra o Botdell. Na parte de baixo do tabuleiro é possível observar as cartas que orientarão as ações dele durante a partida, sendo sua seleção determinada a partir do rolamento de um dado.
Para facilitar o jogo, confeccionei essas cartas a partir de fluxogramas criados por um usuário do BGG.
A nova edição renovou o jogo de uma forma incrível e o novo modo solo foi a cereja do bolo. Eu simplesmente adorei. O Botdell é um adversário altamente competitivo e difícil de se bater. Suas principais desvantagens são a curva de aprendizado envolvida em seu uso, o manuseio de recursos e, por fim, a pontuação, que é calculada de forma diferente do jogador e pouco instintiva. Mesmo com esses senões, a experiência de jogar contra ele é fantástica.
Snowdonia, portanto, é uma ótima experiência de jogo, quer seja solo, quer seja multiplayer. É um worker placement versátil, acessível, mas altamente estratégico e desafiador.
Gostaria também de agradecer ao
PaladinoMonge pela ótima postagem no canal
BGG II há alguns poucos dias, também sobre esse ótimo jogo. Confiram o texto dele também:
Snowdonia - Vale a Pena Jogar de Novo?
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E lembre-se: TOGETHER, WE GAME ALONE!
Daqui para baixo, peço que só leia se quiser, não tem nada a respeito do jogo.
Falei que me interessei pelo jogo por um motivo estritamente pessoal, não foi? Agora explico.
O Snowdonia foi gestado num contexto de valorização da cultura galesa no final da década de 90 e início dos anos 2000. Eu acompanhei muito de perto esse movimento, chamado de Cool Cymru (palavra do gaélico para Gales), através da música. Ele apresentou ao mundo algumas das melhores bandas que Gales já produziu, como Manic Street Preachers, Stereophonics, Super Furry Animals e Catatonia. Além desses, o movimento ressuscitou a carreira de estrelas maiores, como Tom Jones e Shirley Bassey. Nessa época eu vivia imerso no britpop e uma coisa levou a outra e eu fiquei pirado nas músicas desse grupo de bandas. O Super Furry Animals, inclusive, chegou a lançar um álbum em gaélico, o Mwng, que eu ouvia loucamente e cheguei até mesmo a aprender as letras e a terrível pronúncia da língua. Coisa de maluco, eu sei, mas era o que eu gostava de fazer. Meu interesse pelo jogo surgiu dessa lembrança nostálgica dessa época muito boa. Ainda hoje coloco essas bandas galesas enquanto estou jogando o meu querido Snowdonia. É uma viagem no tempo!