Logo que vieram os primeiros anúncios a respeito do lançamento de Blacksmith Brothers, eu me interessei pelo jogo. Não sabia muito a respeito, mas fui acompanhando à distância as notícias e meu interesse foi crescente. Tê-lo visto em mesa em um encontro Boardgames São Paulo, ainda sem ter tido a oportunidade de jogá-lo, me mostrou que meu faro estava certo: era um jogo do qual eu gostaria. Embora num primeiro momento o que tenha mais chamado minha atenção tenha sido a arte belíssima, quando o manual foi disponibilizado eu o li rapidamente e tive certeza de que era um jogo que eu não apenas gostaria, mas poderia aplicar algumas idéias que vinham e voltavam em minha cabeça.
Mais ou menos na mesma época, eu havia traduzido para a 1 Player Guild Brasil a série The Automa Approach, que eram postagens do designer Morten Monrad Pedersen em seu blog no BGG. Foi ele quem que criou modos solo para alguns jogos da Stonemaier Games (ex.: Viticuluture, Between Two Cities, Scythe) e contribuiu com Hostage Negotiator. Além disso ele gentilmente respondeu algumas perguntas que lhe fiz por email, as quais traduzi e postei na página da guilda também. Nessa série, Morten descrevia o método que ele aplicou para desenvolver seus automas. Aquilo foi uma verdadeira epifania para mim. Eu vinha jogando Agricola solo há algum tempo, mas sempre achei a variante solo meio sem graça. Lendo o texto do Morten, pensei em criar um automa para o Agricola, mas o sorteio das novas cartas de ação a cada turno tornava este desejo uma tarefa hercúlea demais. Comprei um Viticulture Essential Edition e joguei bastante o modo solo, para entender o que dava certo e o que podia melhorar ainda mais. Daí comecei a procurar outros jogos com elementos semelhantes que comportassem um automa nos moldes do que Morten criara. E é justamente aí que entrou o Blacksmith Brothers.
Logo pela primeira leitura do manual, pude perceber que a interação entre os jogadores era dada fundamentalmente pela disputa de espaços no tabuleiro. Alguns dos tokens posicionados nas localidades ampliavam mais a interação, mas ela seguia sendo limitada. O cerne do jogo era a criação de uma engrenagem que permitisse a máxima eficiência e a obtenção de pontos de vitória, pouco importando o que ou como seu adversário fizesse a parte dele. Estes elementos caracterizavam o que Morten descrevera como jogo multiplayer solitário, um dos melhores tipos para a criação de automas. Para provar este princípio, comprei o jogo na pré-venda e logo que ele chegou, já com o manual devidamente lido a priori, coloquei ele na mesa e joguei ele algumas vezes sozinho, adaptando as regras de 2 jogadores para apenas 1 jogador. Não me surpreendeu em nada que o jogo funcionava. Era um típico beat your own score: lutávamos contra nosso melhor resultado partida após partida. Era algo muito semelhante ao que outros jogos de alocação de trabalhadores permitiam, como por exemplo Agricola e Caverna. Em Viticulture, o automa parte de uma pontuação inicial de 25 pontos, sendo o desafio do jogador atingir e superar este valor. Nenhum dos dois cenários me agrada muito, pois sempre achei que um verdadeiro automa deveria ter pontuação variável, reativa ao que acontecia no jogo.
Bom, dada esta explicação, parti à criação do automa para Blacksmith Brothers. Embora o nome talvez se aplicasse a este jogo, achei que trocar o nome Automa por Golem faria mais sentido do ponto de vista temático. Quem veio do RPG entenderá bem a referência e concordará bem comigo, mas para os que não vieram, os golems são construtos mágicos animadas a partir de elementos como pedra, argila e, como no RPG, metal. Eram adversários formidáveis, difíceis e, muitas vezes, letais. Meu desafio foi criar algo que replicasse o jogo multiplayer com um mínimo de trabalho para o jogador solo e respeitando não apenas o design, mas também as regras originais do jogo.
Desta forma apliquei passo a passo as etapas descritas por Morten em sua Automa Approach:
1) Esmiúce o jogo – Joguei Blacksmith Brothers várias vezes sozinho e algumas vezes com outros jogadores. Foram experiências bem diferentes entre si, mas persistia minha impressão de que este era um jogo multiplayer solitário.
2) Encontre a essência da experiência multiplayer – Segundo Morten, aqui devemos responder a duas perguntas fundamentais:
a) De que modo a presença de outros jogadores afeta a essência do jogo?
Como disse anteriormente, o ponto mais crítico de interação entre os jogadores é a disputa de espaços para a alocação de seus trabalhadores no tabuleiro. Alguns dos tokens aleatórios das localidades ampliam esta interação, mas ela é limitada. Fundamentalmente, um jogador pode interferir com outro pelo bloqueio de espaços desejados pelo outro, levando-o a rever sua estratégia para aquela jogada, ou, através dos efeitos dos tokens, forçando o jogador a esta ou aquela ação.
b) Quais os aspectos da presença de outros jogadores que são menos importantes ao jogador solo?
Em se tratando de um jogo multiplayer solitário, a presença de outro jogador não é essencial. O modo pelo qual um jogador desenvolve sua engrenagem para a produção de pontos e o quão efetiva ela é não é relevante durante o jogo, somente no momento do resultado final. Ademais, não há uma disputa muito intensa por cartas de encomenda, recursos ou tokens de melhoria para as oficinas. Há bastante de todos estes elementos para todos na mesa e, mesmo que um deles falte é possível adaptar a estratégia de jogo e procurar um caminho alternativo para a vitória.
3) Crie o Automa – Neste ponto foi criado o Golem. Foram necessários alguns pequenos ajustes das regras, em particular das ações das localidades e dos tokens, mas nada que mudasse drasticamente a experiência do jogo. Para o Golem, eu concebi um deck de 52 cartas que representava suas escolhas de ações turno a turno. Um ponto que fiz questão de que fosse diferente do que se encontra em Viticulture e nos jogos beat your own score foi a pontuação. Em nenhuma partida o Automa terá a mesma quantidade de pontos, pois esta será reativa às cartas de encomenda, aos tokens especiais das localidades e, logicamente às ações do jogador. Estas regras para o cálculo da pontuação do Golem foram a modificação mais drástica das regras originais do jogo, porém não acho que elas tenham sido responsáveis por uma mudança importante da experiência, o que era uma premissa a ser respeitada sempre.
4) Teste o jogo você mesmo – Joguei várias partidas contra o Golem. Ganhei algumas, perdi outras, mas não estava satisfeito com o resultado final. O jogo era errático, por vezes muito fácil, por vezes muito difícil, mas sobretudo meio esquizofrênico. O Golem parecia louco, precisava de mais disciplina e estratégia. Revi as regras. Joguei e ainda não ficou bom. Revi as regras novamente, joguei e ficou um pouco melhor, mas o Golem ainda não estava afinado. Aos poucos pude perceber que o problema era em sua seleção de ações. Fiz alguns testes com o deck e o problema estava ali claramente. Após algumas tentativas, o deck, inicialmente de 52 cartas, foi enxugado para 28. Os fundamentos para a seleção das ações do Golem foram o bloqueio de espaços críticos para o jogador, a obtenção de cartas de encomenda que seriam convertidas em pontos de prestígio e a aceleração da partida pelo deslocamento do marcador do Rei. Desta forma o jogador seria obrigado a criar sua engrenagem rapidamente e maximizar a eficiência de suas ações, pois ele não estaria jogando contra um adversário que pontuaria muito e muito rapidamente e cujas ações fariam com que o tempo para o jogador fosse reduzido drasticamente. O Golem parecia funcionar da forma como eu imaginara. As modificações das regras para a pontuação ficaram boas a princípio.
5) Playtests externos – Aqui é que eu conto com o apoio da comunidade boardgamer, pois eu não tive playtests externos. Como eu sou um jogador solo de longa data, acho que o jogo foi testado por alguém com alguma experiência nisso. Logicamente que duas ou mais cabeças pensam melhor do que uma apenas, de modo que qualquer feedback será bem vindo.
6) Acerte o nível de dificuldade – Assim como no RPG, o Golem é um adversário vigoroso, vencê-lo não é para os de coração fraco. Tenho uma estimativa de que a taxa de vitória contra ele deva ser algo em torno de 30%. Há alguns artifícios dos quais posso lançar mão para ajustar a dificuldade para mais ou para menos. Isso vai muito do gosto de cada um. Eu gosto de jogos difíceis e esse nível me pareceu bom. Conforme o feedback, posso fazer alguns ajustes.
Esse texto, de modo algum, é um review desse jogo, mas acho que o Nicholas Paschalis, a quem não conheço, acertou em cheio com um jogo de alocação de trabalhadores muito simples, gostoso e com camadas de estratégia que agradam desde o heavy gamer até o jogador novato. A Ludofy teve seus erros e acertos na produção, mas que fique claro que os problemas são menores e de modo algum interferem com a boa experiência que é este jogo. A Ludofy acertou na arte do Diego Sanchez, na qualidade da caixa, do tabuleiro e das peças de madeira, mas os tokens e as cartas, vamos e venhamos, ficaram muito ruins. Estas últimas, inclusive, ainda tem a marca de corte. Pode parecer chatice minha, mas o mercado nacional não comportará jogos com esse nível de qualidade de produção muito em breve, afinal temos tido oferta e qualidade crescentes. Não prosperará quem oferecer produtos subótimos neste quesito.
Bom, o arquivo contendo as regras e as cartas do deck do Golem está disponível aqui na Ludopedia, na página do jogo. Eu não sou game designer, mas sou um cara curioso nesse mundo. Sugestões e críticas são muito bem vindas. Se alguém puder testar, ficarei muito grato de ouvir o que achou.
EDIT: Agora que o arquivo já subiu, coloco o link
aqui. Contem as regras e cartas.
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