Designer: Vlaada Chvátil
Editora: Czech Games Edition
Ano: 2009
Região das Montanhas dos Gigantes, cerca de 20 décadas atrás. Taberna na margem do Rio Elba. Goles fartos de cerveja com forte gosto maltado. Mal se conheciam, porém ao fim da noite de bebedeira o Guerreiro, o Feiticeiro, o Clérigo e o Ladino já se tornam amigos inseparáveis, um grupo de aventureiros prontos para livrar o mundo do mal e esgotar o estoque de bebida fermentada das estalagens por onde passarem. Eles sabem que não muito longe dali um Senhor das Trevas está construindo túneis com armadilhas, tesouros e monstros numa colina. Combinam de combater esse vilão na manhã seguinte. Ou na tarde seguinte, dependendo da ressaca. Eles estão ávidos para conquistar a masmorra e punir o malvado vilão...
"Vocês também estão vendo elefantes voadores?", pergunta o Feiticeiro, visivelmente desorientado.
O Guerreiro abre a boca para responder, mas não parece capaz de expressar alguma palavra.
[Arroto estrondoso.]
As bebidas nessa região da Boêmia têm algum ingrediente estranho...
Tratamento temático
O designer tcheco Vlaada Chvátil é figura que dispensa apresentações no mundo dos jogos de tabuleiro, aliando versatilidade e apuro mecânico em suas diversas produções direcionadas a públicos os mais distintos possíveis. Porém a sua característica mais marcante, a qual norteia essa análise, talvez seja a sua exitosa forma de contextualizar a temática em seus jogos de forma orgânica e facilitadora. Seu jogo Dungeon Lords, como veremos, é um notável exemplo disso.
Há diversos designers de jogos de tabuleiro que são conceituados pelo aproveitamento temático em suas obras. Temos por exemplo o português Vital Lacerda, cujos jogos são concebidos primeiramente no tema e dele advêm as engrenagens de funcionamento da experiência lúdica, absolutamente encaixadas nos preceitos temáticos. Um outro exemplo é Phil Eklund, o qual confere aos seus jogos outro tipo de tratamento quanto ao argumento: aqui o tema é essencial e norteador de todas as decisões de design, com o objetivo de criar uma espécie de jogo-simulador (sua experiência enquanto engenheiro aeroespacial aposentado da NASA o inspirou a criar o famoso High Frontier 4 All, que em linhas gerais é um verdadeiro simulador do sistema solar e das missões e tecnologias da agência espacial americana).
Ligeiramente distinto é o tratamento temático que Vlaada utiliza em Dungeon Lords. Os aspectos mecânicos parecem ocupar o primeiro plano do jogo, o qual funciona quase como um puzzle de gestão de recursos e planejamento. Somos vilões construindo uma dungeon que invariavelmente será visitada por heróis. Precisamos construir túneis e salas, recrutar imps trabalhadores e posicionar armadilhas e monstros de modo a evitar o êxito dos benfeitores em destruir nossa construção. Quanto mais maus formos, mais fortes serão os heróis a batalhar em nossa masmorra.
Visão geral dos componentes do jogo, com tabuleiro central, tabuleiros de jogador e tabuleiro de rodadas.
Arranjo mecânico
O jogo está alicerçado na combinação de duas mecânicas básicas. Em cada rodada, selecionamos e programamos três ações, deixando indisponíveis as duas últimas para a próxima rodada. Após isso, procedemos com a alocação de trabalhadores em cada um dos espaços de ação programados, respeitando a ordem de turno. Porém cada espaço de ação comporta somente três alocações por turno; em uma partida com 4 jogadores, considerado o número ideal para a experiência mais proveitosa de Dungeon Lords, caso todos os jogadores selecionem uma mesma ação o último na ordem de alocação não conseguirá realizá-la.
Impressiona a forma como o designer consegue combinar tais mecânicas, conferindo grande fluidez à jogabilidade e causando a sensação de que o jogo transcorre rapidamente. Dois detalhes sobre tais engrenagens merecem certo destaque.
Primeiramente: a seleção de ações é combinada com uma modificação que trava as ações utilizadas no turno anterior (com exceção da primeira), conferindo uma camada de leitura de mesa e identificação do comportamento do jogador oponente bastante interessante, possibilitando a previsão de caminhos estratégicos que possam conflitar com os seus e permitindo o planejamento do tão querido bloqueio de ações dos rivais.
Em segundo lugar, a alocação de trabalhadores é decorrente da seleção de ações e se apresenta de duas maneiras no jogo. A primeira delas, à qual chamarei de alocação direta, corresponde à etapa de alocar nos espaços de ação o seu trabalhador, respeitando as regras de ordem do turno, com todas as possíveis implicações estratégicas já mencionadas. A segunda delas, a alocação indireta, corresponde à realização da ação selecionada que porventura demande imps trabalhadores, estando condicionada ao número de imps disponíveis. Caso o jogador consiga a oportunidade, por exemplo, de realizar uma ação de escavar túnel com três trabalhadores e só tenha um imp em sua reserva, perderá a oportunidade de realizá-la de forma completa.
Como é possível perceber, essas duas mecânicas básicas foram trabalhadas de modo a formarem uma combinação que garante um ciclo de jogo muito agradável e fluido, formando uma estrutura bastante coesa. Trata-se ao meu ver do cerne do funcionamento do jogo. Outros elementos, como as cartas dos heróis, monstros, armadilhas e magias acrescentam complexidades e interações diversas a esse motor básico.
Esq.: alocação direta de trabalhadores após a etapa de seleção de ações. Dir.: alocação indireta de trabalhadores (imps) na realização das ações.
O amálgama
E aqui voltamos à discussão sobre a temática. Temos um entrelaçamento mecânico bastante bem ajustado e que roda de forma orgânica. Se parássemos aqui a análise, possivelmente estaríamos tratando de algum jogo de Stefan Feld (designer aclamado pelo brilhantismo no arranjo de mecânicas em suas obras). O diferencial de Vlaada Chvátil é conseguir envolver esse relógio de algoritmos com uma roupagem que acomoda perfeitamente todas as suas partes, contextualizando as decisões de design em um tema que parece encaixar como uma luva.
Isso é sentido desde a leitura do manual: temos narradores e personagens explicando tematicamente as regras, facilitando a internalização dos parâmetros principais e de exceções e “regrinhas”. Um exemplo notável é a regra sobre posicionamento de armadilhas: em um túnel pode ser posicionada uma armadilha, enquanto em uma sala podem ser colocadas duas. Porém como o túnel é estreito, os heróis que passarem sempre ativarão a armadilha. Já a sala é mais ampla, então há chances de os heróis não pisarem exatamente no lugar certo. Para isso, é preciso colocar uma moeda de ouro nas armadilhas posicionadas em salas. Essas moedas no chão despertarão a curiosidade dos heróis e servirão de isca…
Dungeon Lords é um excelente jogo que une em simbiose perfeita seus aspectos mecânicos e temáticos. Seu ciclo de jogo é bastante envolvente e fluido, com uma muito bem lapidada estrutura de rodadas. Trata-se de um jogo complexo e rico em possibilidades, com diversas formas de pontuar. E de perder pontuação, já que uma das principais famas do jogo é ser extremamente punitivo nesse quesito. De fato, perder pontos é algo comum e necessário de ser gerenciado no jogo, caso contrário pontuações finais negativas podem ocorrer.
Antes de chorar pelo aperto na pontuação, lembre-se das verdadeiras vítimas:
Mas e o Senhor das Trevas? Alguém já pensou nos seus sentimentos? Aqueles aventureiros beberrões não podem imaginar o quanto de dinheiro é necessário para a construção de uma dungeon respeitável. Eles não têm idéia de como é difícil fazer o túnel através do granito, quão dispendiosas são essas armadilhas hoje em dia, o quão difícil é encontrar Imps qualificados, ou quanta comida é necessária para alimentar um Troll. E toda a burocracia!.. Masmorras devem atender a especificações rígidas de segurança, a mineração de ouro está sujeita a regulamentos rigorosos e pesados impostos devem ser pagos ao Ministério de Dungeons. E assim que finalmente conseguimos com muito esforço construir nossa masmorra, vem esse grupo de bons samaritanos fedendo a malte e destroem tudo! A vida definitivamente não é fácil para um honesto dono de dungeon...
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Lusorius
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