Boa parte dos jogos de tabuleiro modernos se reduz a um acúmulo de meios que conduzem, ao fim, a uma massa de pontos de vitória. Ações como construir, mover, adquirir, servir, entregar, vender, contratar etc. não são senão métodos de obtenção de pontos de vitória. Jogos como Miguel Strogoff (2017), cujo desfecho se dá num duelo contra o traidor, são o suprassumo da exceção. Não importa o tema ou a mecânica, o objetivo é, tradicionalmente, alcançar pontos de vitória. De Catan (1995) a Azul (2017), de Tikal (1999) a The Castle of Burgundi (2011).
E é então que, num universo ao mesmo tempo repetitivo e diversificado, surge a surpresa: NMBR9 (2017), de Peter Wichmann. Este jogo, ao qual durante muito tempo não dei a mínima importância, mostrou-se de repente não apenas um ótimo jogo como uma espécie de versão irônica da maioria dos jogos de tabuleiro atuais.
O motivo desta afirmação está em que, grosso modo, o que fazemos nesse jogo é construir e empilhar pontos de vitória. Ora, se pontos de vitória são o único objetivo, mascarado ou teatralizado por uma soma – às vezes bem pesada – de ações e encargos, por que não transformar os tais pontos em simples construções?
É o que acontece: três regras animam dez fichas de números, que vão de 0 a 9. Cada uma vale o quanto pesa, ou seja, o 9 vale 9; o 8, 8, e daí por diante. Mas tais valores aumentam ou se anulam conforme o nível dos andares, na construção. Vejamos: o 5, se construído no térreo, não vale nada; mas, no primeiro andar, vale 5; no segundo, 10; no terceiro, 15; no 4, 20. Ou seja, para pontuar com grande eficiência, construa os números menores embaixo e vá subindo com os maiores. Uma conclusão elementar, sem dúvida. Mas são exatamente os números maiores que possuem mais área de sustentação, de modo que erguer novos andares sobre eles é mais fácil e muito mais eficaz. Eis, portanto, o desafio: se os números maiores são sorteados no início, temos mais área, o que beneficia subir com os andares, os quais, no entanto, podem não gerar uma pontuação tão alta; mas, se os números menores saem primeiro, perdemos em área de construção, e isso dificulta a expansão vertical, mais proveitosa. A administração proficiente dessas dificuldades de engenharia é o que faz NMBR9 tão divertido, desafiador e estratégico. Um jogo que, de fato, surpreende e causa espanto que não seja mais popular.

Creio que chegou a hora de expor aqui as únicas três regras do NMBR9: 1) construa com a face do número para cima (o que me parece óbvio); 2) construa adjacente a outro número, apenas fazendo tocar um quadrado noutro quadrado, girando a seu bel-prazer a peça que está em jogo no turno; 3) construa no andar superior, atentando para o fato de que o novo andar deve possuir ampla sustentação, não pode se apoiar em vãos nem criar vazios ou lacunas, além de ocupar simultaneamente, pelo menos, dois números.

Se nos voltarmos para as duas primeiras décadas do século XX, em meio a tudo o que aconteceu de terrível naquele tempo – Primeira Guerra Mundial, Gripe Espanhola, naufrágios épicos –, houve as vanguardas artísticas, que, com alto grau de ironia e nonsense, promoveram uma renovação geral, que, de maneira simplificada, consistia em abdicar das tradicionais regras de criação em favor de outras, que, quase sempre, reduziam as obras aos seus princípios essenciais. O romance foi descarnado ao nível do seu entrecho básico, constituído apenas de suas sequências e cenas imprescindíveis; o poema absteve-se das formas fixas e enveredou por uma a trilha de “remédio psicanalítico”, em linguagem única e irrepetível, quase uma mágica com palavras; a pintura se estabeleceu como deformação das formas e primitiva associação de cores; o teatro tornou-se antiteatro; a escultura se desumanizou.
Em NMBR9 o que fez Peter Wichmann foi muito semelhante à renovação da Arte Moderna, durante aquele momento das vanguardas. “Ora, vocês querem pontos de vitória? Pois vou lhes dar pontos de vitória! Melhor: vou fazê-los construir literalmente seus pontos de vitória.”
O eurogame ou jogo autoral reduzido ao seu escopo essencial. Descarnado. Mínimo. Óbvio. Em apenas 20 minutos, às vezes até menos, a partida se conclui. E começa-se outra, e outra… Jogam de 1 a 4 pessoas, naquele formato bem eurogame (embora não o seja), todo mundo jogando solo, com seus botões, de acordo com as cartas que são abertas, uma por rodada, e ao fim o melhor desempenho solitário vence!
Não sei se foi intencional ou por acaso, se foi pensado ou inspirado, mas a verdade é que NMBR9 joga ironicamente com o meio de que provém e, por vezes, beira o sarcasmo, com suas regras enxutíssimas e seus componentes mais que elementares.
Penso no quanto alguns jogos são menos divertidos que fatigantes e no quanto outros que, de tão profusos em tudo, mofam nas prateleiras, pois é difícil conciliar a ansiedade de jogar com a paciência de preparar cada item, salvo que seja de antemão, quando os parceiros ainda estão a caminho… E há então esse jogo, em tudo a mesma coisa que outros, e que só exige que se abra a caixa, pegue-se o pequeno maço de cartas, embaralhe-se e abra-se a primeira, de modo que o jogo comece, com cada pessoa pegando (do próprio insert na caixa) a construção sorteada, e com ela fazendo o que bem entende, de acordo com aquelas 3 regras, pensando nos pontos de vitória e em nada mais…
A ironia tem nome, ou melhor, números: NMBR9!
Mayrant Gallo é professor, escritor, boardgamer e sócio da Invasion BG. Já publicou mais de 15 livros. Entusiasta por jogos de tabuleiro, tem predileção por jogos para 2 pessoas e solo. Tematicamente, aprecia jogos de construção de cidades e sobre a Guerra Fria. Entre as mecânicas de que mais gosta estão: colocação de peças, construção a partir de um modelo, seleção de cartas, controle de área e gestão de mão.
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