Li e ouvi dizer, ao longo dos últimos meses, que a pandemia do Covid-19 deixaria danos irreversíveis em muitas pessoas. Ora, de minha parte, eu queria acreditar que não seria assim; que, exceto pelas perdas, estas sim irreversíveis, quem sobrevivesse voltaria à vida normal, de antes de todo esse horror. Mas a verdade é que, com o declínio da curva de infecção, num momento em que as pessoas começaram a relaxar um pouco a quarentena e a se encontrar, muito embora ainda devidamente mascaradas, pude comprovar, com certo assombro, o quanto havia de verdade naquela afirmação.
Eu estava saindo de uma farmácia, quando me deparei com um amigo de antigas e acirradas jogatinas. (Sempre me surpreendo com o fato de que mesmo com máscara todos se reconhecem; ou seja, os super-heróis dos quadrinhos nos enganaram.) Bem, nos cumprimentamos rapidamente, à distância, e logo ele começou a me contar de como tinha sido a primeira reunião de jogadores pós-pandemia de que ele participara, uma semana antes.
Seu entusiasmo me contagiou, mas logo percebi que havia algo de errado, pois ele dissera:
“Joguei vários jogos… Alguns que eu já conhecia e outros que me eram completamente desconhecidos”.
(Preciso frisar que meu amigo é uma das pessoas que conheço que melhor falam o português, como vocês podem perceber no uso clássico do “me” como complemento nominal.)
“Um dos que mais apreciei foi o Carcassonne… Afora o fato de que o ladrão é sempre acionado quando os jogadores tiram o 7 nos dados, tudo o mais é empolgante: abrir estradas, o escambo de recursos, as cartas de desenvolvimento…”
“Espere aí”, retruquei, “esse não seria o Catan?!”
“Ah, sim, também joguei Catan! Achei bem legal, mas não concordo com aquela carta de escravos… E a solução foi ainda a pior: faquir! Mas o jogo é bom!
“Tem algo errado”, retruquei mais uma vez, “esse é o Five Tribes.”
“Oh, Five Tribes, gostei demais! Um trenzinho atrás do outro, num tabuleiro lindo, várias rotas… Incrível!”
“Cara, esse é o Ticket to Ride…!”, exclamei.
“TTR, não é? Também joguei esse! Particularmente adorei aquela regra de ter pontos de ação para gastar durante seu turno. E a pirâmide…? Linda demais, com seu explorador lá em cima, dominando tudo! E você sabe que adoro cosmologia.”
“Não, esse é o Tikal! E não é cosmologia, mas sim arqueologia”, falei, já meio indeciso sobre quem era o maluco nessa história.
“Ah, Tikal! Uma jornada de dias tocando o nosso gado! Jogão!… E você, o que você tem jogado?”
Minha perplexidade era grande, mas ainda assim revelei que, com a pandemia, eu vinha me dedicando a jogos com a mecânica de escrever ou desenhar, muitos dos quais oferecem o modo solo, e como moro sozinho… “Cartógrafos, por exemplo.”
E ele disse:
“Legal! Conheço esse. Antigo. Sem edição há décadas. Gosto de jogos passados em portos, com o fluxo de navios indo e vindo, sendo carregados, descarregados, gerando recursos…”
Pensei comigo que não havia solução para aquele dilema. Eu e meu amigo estávamos, talvez, na interseção de duas dimensões bem diferentes, onde os jogos, por algum efeito do caos à nossa volta, adquiriam as características uns dos outros. Ou então ele estava doente. Ou eu ficando maluco.
E assim, talvez porque afinal a preservação de uma verdadeira amizade deve estar acima de qualquer coisa, qualquer conflito ou desavença, qualquer jogo, falei:
“Um jogo que tenho jogado muito é… Como é mesmo o nome?… Aquele em que os jogadores botam ovos… Cheio de passarinhos…”
“Sim, sei!”, ele se entusiasmou.
“Ah, sim, lembrei: 7 Wonders!”, falei com ironia.
“Isso, muito bom mesmo! Também gosto! E tem modo solitário, já que você aprecia: a gente é Robson Crusoé, sozinho numa ilha, tendo que caçar, comer.”
“Verdade”, acrescentei. “E tem o ladrão, o fazendeiro deitado na relva…”
“Sim, sim! Muito bom jogo!”, ele era só empolgação.
E assim ficamos, por alguns minutos, misturando tudo. Jogos, temas, mecânicas e até criadores, pois houve um momento em que meu amigo me disse que não podia acreditar que o Vital Lacerda, com todo aquele potencial criativo, não fizesse outro tipo de jogo senão todos aqueles Ticket to Ride.
O auge se deu quando ele me disse, já no momento de nos despedirmos:
“Mas sabe qual é o meu jogo preferido? O número 1?”
“Nem imagino.”
“Pandemic!”, e fez uma pausa. Depois acrescentou:
“Por que ninguém teve essa ideia antes?”
“Qual?”, perguntei, incapaz de saber qual seria.
“Construção de rotas com usinas de energia!”
Permaneci um momento calado. Depois tentei argumentar:
“Ora… esse é…”, mas desisti e emendei: “Sim, sim, uma ideia incrível!”
“Bem, vou indo. Vamos marcar uma jogatina para breve.”
“Vamos sim!”, falei. “Que tal Power Grid?”
Ele já estava um pouco distante, pois começara a andar, mas se voltou e disse:
“Não, esse não! Já chega de pandemia!”
Mayrant Gallo é professor, escritor, boardgamer e sócio da Invasion BG. Já publicou mais de 15 livros. Entusiasta por jogos de tabuleiro, tem predileção por jogos para 2 pessoas e solo. Tematicamente, aprecia jogos de construção de cidades e sobre a Guerra Fria. Entre as mecânicas de que mais gosta estão: colocação de peças, construção a partir de um modelo, seleção de cartas, controle de área e gestão de mão.
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