O review de hoje é, a bem da verdade, a terceira parte de um único review. A primeira parte foi o review de
Anachrony, a segunda o de
Troyes e a terceira esse aqui, que versa sobre
Black Angel. Precisei passar por esses dois jogos e seus dois reviews, para assimilar melhor minhas ideias sobre o jogo atual. Em consonância com a estrutura trilógica, farei, ainda, três afirmações, uma para cada review, para explicar o porquê de um texto em três partes.
Black Angel rumando ao planeta Esses (palavra do latim que significa esperança).
Lançado na feira de Essen do longínquo 2019, Black Angel dividiu bastante a opinião do público e de reviewers de peso. Algumas pessoas cravavam que era, sem sombra de dúvida, o melhor jogo daquele ano. Outras diziam que era um bom jogo, mas nada demais e que a arte carregada atrapalhava mais do que ajudava. Sempre que essas coisas acontecem, fico de orelha em pé tentando entender, pois é aquela história antiga: falem mal, mas falem de mim. Se tem alguém falando, o assunto é relevante de alguma forma.
O jogo trazia a pecha de ser uma retematização do consagrado Troyes, um dos melhores jogos do ano de 2010. Criado pelo mesmo grupo de autores, Sébastien Dujardin, Xavier Georges e Alain Orban, além de editado pela mesma empresa, a Pearl Games, o jogo possui algumas coisas que de fato lembram seu predecessor, mas tem elementos suficientes para poder se sustentar com as próprias pernas como algo único. Os principais elementos mecânicos semelhantes são 1) o uso de dados em espaços de ação para a alocação, cuja potência varia em função das faces dos dados, 2) a possibilidade de compra dos dados dos adversários e 3) a possibilidade de se alocar dados em cartas com efeitos diferentes das ações impressas no tabuleiro. Para quem conhece o Troyes, as semelhanças são inegáveis, porém Black Angel traz vários elementos que o distinguem, entre os quais destaco o tabuleiro de ações programadas para as tecnologias, o tabuleiro espacial e, o que interessa ao nosso canal, o modo solo. Posto isso, Black Angel é um ente próprio. Olhando-se de longe, é como se fosse um irmão mais novo muito parecido com um irmão mais velho, mas é impossível confundir os dois, pois são bem diferentes entre si. A meu ver, a comparação faz mal ao jogo, da mesma forma que a comparação com
Terraforming Mars também foi deletéria ao
Cidades Submersas. Troyes e Black Angel são distintos o suficiente para estarem presentes na mesma coleção sem problema algum.
Pensando no Anachrony, a primeira parte do meu extenso review, vamos à minha primeira afirmação: Black Angel é um dos euros mais temáticos que já joguei.
Bastante gente criticou Black Angel como um jogo árido. “Você não se sente criando algo”. “Você não se sente evoluindo”. Desculpem-me a honestidade, mas são uns chatos de galochas. Vejam na primeira página do manual a descrição do jogo - Sua tripulação será composta exclusivamente de robôs. O jogo é sim, árido, mas isso reflete o ambiente estéril, mecânico e totalmente automatizado do interior da nave. Adicionalmente, a mecânica de ações programadas a partir da ativação das peças de tecnologias por cartas em torno do seu tabuleiro pessoal traz ainda mais essa sensação de que as coisas ocorrem de forma planejada, previsível e escalonada. Inicialmente não tive muito a sensação de que isso pudesse ser verdade, mas, depois de algumas partidas e refletindo sobre a natureza e a proposta do jogo, comecei a curtir demais esse aspecto. A arte com cores ultravibrantes de Ian O'Toole, que ficou conhecido por jogos como
Lisboa,
On Mars e
Nemo's War (Second Edition), contribui particularmente para essa sensação temática.
Os tabuleiros (principal, do jogador e, à direita, uma parte do espacial). Com as cores vibrantes e a produção magnífica.
A menção ao Anachrony foi justamente em função de percebê-lo como um euro temático. Até então, o Anachrony era um dos euros mais temáticos que eu havia jogado, mas Black Angel proporciona sensações de adequação temática muito semelhantes. Não é como em Troyes, onde você combate problemas como a fome e praga com exércitos.
E, já que falei novamente no Troyes, que compõe a segunda parte do meu (muy extenso) review, segue minha segunda afirmação: Troyes é um jogo multiplayer superior a Black Angel, mas Black Angel é um jogo solo superior a Troyes.
No review anterior, falei sobre Le Roi, o modo solo criado por Shadi Torbey para Troyes. É um modo solo muito funcional, que dá um bom feeling do jogo multiplayer original, mas que não me agradou muito. A despeito de suas muitas qualidades de design, o modo solo de Troyes não faz jus à qualidade do gameplay com mesa cheia. Com Black Angel, por outro lado, a situação é o extremo oposto. O modo solo é brilhante, um dos melhores que já joguei. A partir de um pequeno deck de cartas e um pequeno conjunto de regras, só 2 páginas ao fim do manual, Hal, o automa de Black Angel (que deve fazer referência à obra de Stanley Kubrick e Arthur C. Clarke), recria os principais pontos de interação entre os jogadores e propõe um desafio muito bom. Em essência, ele replica as ações de um segundo jogador e gera pontos de vitória critérios definidos a priori. Ele é bem difícil de se bater, mesmo no nível normal, mas não é impossível. Em 13 partidas, o venci 4 vezes, sendo que 3 dessas foram nas últimas 5 partidas. O fato é que ele é bem implementado, simples de se gerenciar e traz exatamente o mesmo feeling do jogo com outras pessoas.
Por que, então, Troyes ganha no multiplayer e Black Angel no solo? A impressão que tenho é que o primeiro é um euro de peso inferior ao segundo, com regras um pouco mais simples e que ganha mais fôlego com maior interação. Seu modo solo, embora funcional, não tem a mesma elegância do seu sucessor. Black Angel tem mais coisa acontecendo em jogo do que Troyes: tem um tabuleiro pessoal, tem o tabuleiro espacial, as cartas na mão e as tecnologias. Ainda que não seja um jogo de regras muito complexas, sua árvore de decisões é mais intrincada, requer mais planejamento. Tenho, com isso, a sensação de que ele será melhor em menores contagens de jogadores e, nas contagens mais altas, será bom só em mesas nos quais os jogadores conhecerão bem as regras. Aqueles jogos que funcionam bem em menores contagens tendem a ser também aqueles que funcionam melhor para os modos solo, o que me parece ser o caso. Black Angel não é um multiplayer solitaire típico como Agricola e alguns de meus outros jogos favoritos, mas é um jogo em que você tem mais opções estratégicas e táticas, a interação, ainda que importante, não é o cerne do que ele tem de melhor.

Cartas do modo solo. Em cada turno de Hal, 2 ações são possíveis na maioria das vezes. A escolha entre elas depende, principalmente, da última ação selecionada por você, o jogador.
Agora, minha terceira afirmação, meio que uma conclusão, a propósito da terceira parte do meu review de Black Angel: este jogo talvez tenha o melhor modo solo lançado em 2019.
Essa última é uma afirmação complicada de se sustentar. 2019 teve o lançamento de jogos como
Pax Pamir (Second Edition),
Maracaibo e
Tapestry, que possuem modos solo criados por grandes designers - o primeiro pelo Ricky Royal, o segundo pelo próprio Pfister e, o terceiro, pela Automa Factory. No entanto, me maravilhei com a elegância do modo solo de Black Angel. É incrível como com poucos componentes e regras sucintas, que em nada modificam o jogo, você consegue jogar uma partida recompensadora e que replica muito bem o jogo com outro jogador. A meu ver, ele se qualifica como sendo melhor por isso, por agregar pouca complexidade. Com o crescimento da minha coleção, cada vez mais tenho buscado jogos que ofereçam boas escolhas, mas que não me sufoquem com manuais extensos e regras difíceis. O jogo tem um design primoroso, mas seu modo solo realça e reforça a experiência por ele proporcionada. Cedo ou tarde farei review desses outros jogos citados, que aguardam seu lugar aqui na minha pilha da vergonha.
Como último ponto, o elefante no meio da sala: o preço. Vale a bagatela de quase 600 reais? O preço retail dele fora do Brasil oscila em torno de 70 dólares, o que, equivale, a grosso modo e considerando-se taxas e impostos sobre o dólar, a uns 430 reais. Se for incluído o valor de frete, possivelmente chega perto dos 526 reais que paguei pela minha cópia (com sleeves e frete grátis). Portanto acho que fiquei dentro do que pagaria por uma cópia gringa, isso sem contar a loteria alfandegária, que pode levar o valor de 430 reais a qualquer cifra imaginável. A compra me deixou muito feliz, já joguei uma pá de partidas e vejo ele vendo mesa com frequência no futuro, o que me deixa tranquilo com o valor pago. A meu ver, Black Angel vale o que se pede.
Como reflexão conto a história do artista Piero Manzoni, que fez uma obra intitulada
Merda d’Artista. Era uma latinha com 30 gramas de fezes frescas dele mesmo. Ele se propôs a vender isso. A primeira cópia vendida foi paga com 30 gramas de ouro, o que, em dinheiro de hoje, seria algo em torno de 4500 reais. Em 2017, uma das latas do Manzoni foi leiloada por 275000 euros na Itália. Com isso, Manzoni provou que estava certo desde a concepção de sua ideia: as coisas valem o preço que se paga por elas. Quem determina esse valor é você mesmo.
Obra do Piero Manzoni, leiloada por uma pequena fortuna.
Concluindo, para o modo solo, Black Angel foi uma gratíssima surpresa. É um jogo incrível, que não deixará minha coleção tão cedo. Espero que venham expansões (elas virão, podem ter certeza) que tragam mais coisas boas para esse universo.
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