Como se sabe, o capitalismo é uma selvageria: passa por cima de tudo e todos em busca de lucro e progresso. Começou primitivamente nos primórdios da humanidade, com o escambo, se expandiu séculos depois com os Descobrimentos, consolidou-se com a Revolução Industrial, sistematizou-se com as duas Grandes Guerras e se refinou em nossa época, com as vendas pela internet e pelo telefone móvel. Uma de suas características mais marcantes, contemporaneamente, é a conveniência. Outra: a padronização. Um excelente exemplo do uso lúdico destes dois conceitos é o card game Flip City (2014), de Chih-Fan Chen.

Tomemos “conveniência” como a qualidade de se buscar proveito de acordo com os nossos interesses ou satisfazendo aos interesses alheios. Em Flip City, com sua mecânica de virar e reciclar as cartas, sempre com duas faces diferentes, a permanência do que quer que seja é sempre transitória, conforme a conveniência do jogador. Ora temos a carta Hospital, ora esta se vira em Igreja. A primeira nos oferece mais moedas (lucros com planos médicos?) e uma perda específica, simbolizada por um “emotion” de insatisfação. A segunda, convenientemente, como a própria fé (a mover montanhas, não raro de dinheiro), nos proporciona sobrevida ou, se preferirmos, algum conforto.
A carta Fábrica, como a disseminar poluentes na natureza, nos oferece moedas, mas também prejuízo: a carta do fundo do baralho do jogador vai direto para a pilha de descarte, sem que se lucre nada com isso, pelo contrário ─ o que esta pudesse oferecer é desperdiçado. A Usina Elétrica nos dá 2 pontos (é afinal uma evolução, um progresso), mas alguém terá que pagar por isso, algum prejuízo será legado a alguém ou grupo: simbolicamente, um dos jogadores recebe, na sua pilha de descarte, a carta Apartamento, que oferece benefício ínfimo em face do que se gasta com ela ou para se livrar dela. E não é assim na vida? Compre ou alugue um apartamento e se surpreenda com os gastos que terá, mês a mês, ano a ano… Condomínio, taxa-extra, presentes de Natal aos porteiros e zeladores etc.
E assim vai: enquanto você se esforça por chegar aos pontos de vitória, virando e reciclando cartas, seu adversário ou às vezes você mesmo herdam problemas ou prejuízos. A mecânica de fazer seis cartas se transformar em doze representa assim a parafernália em que se transformou a existência capitalista contemporânea. Algo começa e no ano seguinte ou mesmo no mês seguinte se desfaz. Compra-se um objeto hoje e amanhã ele já não tem nenhuma funcionalidade, e é descartado. Tudo é volátil e efêmero, não permanece a não ser que forneça lucro, uma evolução imediata, traduzida em dinheiro, prestígio ou prazer. Ao transformar a carta Parque (lugar importante para o lazer e a descontração humanos) na carta Estação, gastam-se recursos, demarca-se um progresso típico de qualquer escalada urbana e o lucro virá, mais cedo ou mais tarde: neste caso são 3 pontos de vitória. Ou seja: tudo é transformável e patente de fazer dinheiro e gerar lucro. Se alguém vai perder com isso, que perca!
Outro aspecto, a que me referi no início, é a padronização como meta de expansão do capitalismo moderno. Nada pode ser diferente, tudo deve forçosamente ser igual, para se expandir a qualquer lugar. Chame Globalização de Padronização e dá no mesmo. Em Flip City a cidade que está se formando da mão de cada jogador pode não ser muito parecida, mas ainda assim o é, muito embora formada de elementos que, iguais no início, vão aos poucos se transformando. Mas é uma transformação esperada, ditada por um programado conjunto de possibilidades que vão corroborar certas intenções: ali está a Estação, a Igreja, o Hospital, o Parque, o Shopping Center, a Área Residencial, a Usina Elétrica, o Escritório, o Apartamento, a Loja de Conveniência, a Fábrica e o Centro Empresarial. Construções urbanas típicas, presentes em todas as grandes cidades do mundo na atualidade e que, grosso modo, representam a fórmula básica de se ganhar de dinheiro e gastá-lo. Para alguém vencer, é preciso comprar cartas, virá-las e, depois, reciclá-las. Com 2, 3 ou quatro jogadores, os passos são estes, para, afinal, se chegar aos 8 pontos ou às 18 cartas baixadas, uma a uma, num único turno. O jogador mais atento – tanto ao cuidado para não ser vítima da carta de Área Residencial, a grande vilã do jogo (ou do “emotion” de insatisfação, não menos letal), quanto às possibilidades de, na reciclagem, tirar o maior proveito, pois sua exploração é decisiva – este jogador vai vencer. Apesar de tudo, na padronização, consegue-se alguma diferença. Isso é, talvez, a ironia do jogo.

Gosto de jogos diferentes, tanto quanto ao tema quanto à mecânica. Não me deixo seduzir muito por jogos que, afora algumas variações, repetem outros. Tal ocorrência tende a me desestimular, a me enfarar. No entanto, alguns temas são do meu gosto pessoal e, assim, me fazem mais tolerante à repetição. Por exemplo, aprecio jogos de construção de grandes cidades urbanas, com altos edifícios. (Devo ser um arquiteto ou engenheiro frustrado… C’est la vie!) E foi por este motivo que descobri Flip City; e o fato de ser um card game funcionou como uma espécie de desafio, e então me fiz a seguinte pergunta: como assim construir uma cidade só com cartas? Obviamente que a cidade é abstrata, praticamente desaparece na mecânica do jogo, cujo objetivo é desafiar o jogador a pontuar o mais rápido possível e ganhar, mas, ainda assim, nessa abstração vai como que um símbolo da luta desenfreada por um lugar ao sol. Ou seja: está implícita na competição proporcionada pelo jogo, cujo propósito é ganhar, a concorrência comercial, que se estabelece na perspectiva de lucro. O fundo e a essência do Capitalismo, que, volúvel e insaciável, se adapta, se transforma, ganha novas caras, desenvolve artimanhas, engana, destrói, constrói, destrói de novo, reconstrói.

O mais curioso é que para representar uma verdade tão ordinária – a volubilidade capitalista ─ Chih-Fan Chen teve que desenvolver um mecanismo que é, em tudo, complexo e diferente de qualquer outro jogo de cartas, muito embora guarde algumas semelhanças com outros jogos: cartas com duas faces em constante rotatividade e que não podem ser permutadas livremente; baralho individual que, se o jogador quiser, nunca se desfaz e que forçosamente deve se ampliar, como a sede de riqueza, que promove o acúmulo de bens; um tema que desaparece no fluxo do jogo, mas que, ainda assim, está presente na imagem das cartas e sobretudo no vaivém contínuo, na substituição recorrente, na impermanência dos objetos, que é como as grandes cidades se comportam, diariamente transformadas e retransformadas.
Pensemos em O mito de Sísifo, “o mito decisivo”, ensaio de Albert Camus, no qual ele demonstra que a existência humana é uma repetição enfadonha. Da sucessão de dias no calendário aos interstícios de amor, nada é muito diferente nem novo sob o sol, embora esteja em mutação constante. Flip City é, a cada partida e a cada rodada, uma incursão nesta certeza. E, como jogo, ele investe no que somos. Ou melhor: no que nos tornamos.
Mayrant Gallo é professor, escritor e boardgamer. Já publicou mais de 15 livros. Entusiasta por jogos de tabuleiro, tem predileção por jogos para 2 pessoas e solo. Tematicamente, aprecia jogos de construção de cidades e sobre a Guerra Fria. Entre as mecânicas de que mais gosta estão: colocação de peças, construção a partir de um modelo, seleção de cartas e gestão de mão.
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