Na minha infância meu sonho de consumo (quando eu nem sabia o que era sonho de consumo) era ter um dominó de marfim. Aquele dominó da papelaria que custava R$ 1,99 era brochante (quando eu nem sabia o que era brochante).
Tudo bem... para jogar dominó, só é preciso ter peças com os números legíveis. OK, mas o jogo não era só isso. Com aquelas peças, eu não podia empilhar em forma de torre, ou colocá-los em sequência para logo depois derrubar apenas empurrando o primeiro da fila, ou mesmo deixá-los em pé durante uma partida. Aquele dominó de plástico verde, com bordas tortas e mal acabadas, pontiagudas até, não se sustentavam em pé e era muito desagradável ao toque. Faltava muito para comparar com o de peças de marfim.
Passando por uma lojinha da rodoviária entre baralhos da Copag, enigmas de metal e cubos mágicos, lá estava, em letras douradas:
"Double Six Dominoes
Set of 28
Made in China",
com rebite de metal na linha divisória das peças, num estojo de papelão recoberto por um plástico vermelho muito furreca e fechado por um botão de pressão. Sim! Era o meu dominó, e por apenas R$ 19,99... um preço aceitável para um pai atender os apelos de um menino com a cara grudada no vidro da loja.
Este menino não estava interessado se aquilo era marfim das presas dos elefantes africanos ou se aquele estojo de plástico que cobria o papelão não poderia ver sol ou umidade. As peças eram perfeitas. A experiência do jogo iria ser completa.
Décadas depois, quando o menino encheu a cabeça de fios grisalhos, vieram jogos abstratos que remetiam muito à experiência que teve do dominó: peças com apelo tátil e visual; e pode ser jogado de maneira descontraída com amiguinhos ou analítica, contando peças e prevendo a próxima jogada do adversário. Veio o
Azul, com pequenos azulejos de resina. Veio o
Sagrada com dadinhos coloridos e translúcidos. Veio o
Reef com recifes de resina que lembram módulos de encaixe dum berçário. E finalmente veio o
Dragon Castle.
Por "finalmente", não entenda que é muito melhor que os anteriores. Entenda apenas como aquele que mais me remeteu a minha infância. E olhe que antes eu também já tinha jogado o divertidíssimo
Pickomino, que tem muito mais cara de dominó! A diferença é que só tem um modo de jogar Pickomino. Para ser sincero, dominó, dominó mesmo, não é. Quando você faz o setup do Dragon Castle a impressão é de que você vai jogar uma versão analógica do Microsoft Mahjong.
Em Dragon Castle, o flavor do jogo é bem dispensável. Aliás, é até estranho achar que você estará honrando o dragão e agradando os espíritos por estar invadindo e coletando as ruínas do antigo castelo do dragão para usá-las como matéria-prima na construção dum novo castelo. Se fosse para restaurar o castelo... Tinha que ser para destrui-lo e construir um seu?!
Como jogo moderno, tem uma rejogabilidade incrível. Os 10 espíritos e os 10 dragões podem fazer uma centena de combinações que fazem de cada partida um desafio distinto, tanto para criar o seu próprio castelo, quanto para tirar as peças dos vários castelos que você pode partir no setup. (Aliás, não jogue mais do que uma vez sem as cartas de espíritos e dragões!)
Sim, o jogo é realmente muito bom!
Agora, o charme do jogo está nos componentes, no peso das peças, nos desenhos inspirados no jogo chinês, na experiência tátil da resina. O jogo é bonito do setup à conclusão de cada castelo no fim do jogo. Dá para jogar em família só pela diversão; ou contando peças, bloqueando o colega, buscando ser o primeiro para pegar as melhores peças do próximo andar.
Um jogo não se sustenta sem um desafio mental, sem criar um ambiente competitivo e sem manter o engajamento da mesa. Porém a experiência é incompleta quando o jogo se limita a um conjunto de códigos.
Vá lá! É claro que é possível se divertir com muito pouco e é importante ser criativo para suprir a abstração.
Há quem diga que consegue jogar um jogo na cabeça, só lendo as regras. Há quem diga que o importante é que o jogo não seja quebrado. Mas o jogo, ao menos para mim, precisa ser uma experiência tátil, visual, mental, interativa!
Não vou fazer uma linha com as 116 peças do Dragon Castle para derrubá-las com um toque, mas eu nem conseguiria dizer qual seria minha experiência de jogo se as peças fossem daquele plástico de R$1,99.