Texto originalmente publicado no portal Flynns.
Nos últimos artigos da coluna Além do Jogo, falamos bastante sobre o universo dos board games, dando uma pincelada sobre algumas características mercadológicas que motivam a transposição de mídias, passando pela nostalgia como fator crítico para o sucesso de alguns títulos e apresentando ainda algumas bizarrices do meio. O tema de hoje, dessa vez, segue numa outra toada e embarca numa reflexão sobre uma característica presente em vários jogos modernos: o storytelling.
Compreendido como uma mecânica ou até mesmo como um estilo de jogo, o storytelling nada mais é que um exercício de narrativa incorporado às regras estabelecidas pelo jogo, que influencia o seu andamento e sua própria conclusão e que, de forma bastante similar ao que acontece numa mesa de RPG, congrega não apenas o relato de um ou mais acontecimentos, mas também a interpretação e a resolução de problemas dentro do espaço em que decorre a partida.
Em suma, o storytelling pode ser entendido como uma ferramenta que opera em contextos pré-determinados ou variáveis, de acordo com a proposta do jogo em si, permitindo a inclusão de referências internas ou externas e a proposição de questionamentos, o que impacta positivamente na rejogabilidade, incrementa a imersão e estimula a criatividade.

Sim, Mestre das Trevas! depende estritamente da narrativa para o desenvolvimento das ações. Neste jogo, desenvolvido para quatro a sete jogadores, um dos participantes assume o papel do gênio do mal, Rigor Mortis, e os demais atuam como seus lacaios goblins – os típicos servos aparvalhados. Depois de retornarem de mais uma missão fracassada, estes lacaios precisam se justificar perante o Mestre, bolando desculpas mirabolantes através da combinação de cartas de dica (que inserem elementos na narrativa) com cartas de ação (que direcionam a culpa para outro player ou interrompem o discurso do coleguinha, atrapalhando as estapafúrdias alheias).
Ao jogador que interpreta o Mestre, cabe distribuir Olhares Fulminantes e mediar se a narrativa deve ou não continuar, punindo o servo "menos convincente" e desencadeando o fim da partida, cujo vencedor será aquele que mais baixou cartas de dica, ou seja, quem contribuiu com a narrativa mais coerente.
Winter Tales, por sua vez, é um jogo que preza mais pela qualidade narrativa, revitalizando um tema batido (fábulas infantis) através de uma nova roupagem, remetendo ao trabalhos mais perturbadores do Tim Burton. Neste board game, que comporta de três a sete pessoas na mesa, os jogadores controlam personagens consagrados, inseridos num cenário distópico, desolador e quase steampunk, onde as facções Winter (Inverno) e Spring (Primavera) guerreiam pelo controle de Wintertown.
As ações na partida envolvem um amplo exercício de storytelling, considerando que praticamente toda ação é resultante da jogada de story cards, que servem como fio condutor da narrativa e das motivações de cada personagem, a fim de completar os objetivos propostos pelo jogo e ampliar o placar da sua facção, o que torna as regras do jogo um tanto mais complexas que as de Sim, Mestre das Trevas!
A coisa fica ainda mais interessante quando a partida se dá num número ímpar de jogadores: o papel de "Escritor" é designado para um dos jogadores, agindo como um manipulador externo das ações realizadas por ambos os lados, no intuito de evitar que uma facção prevaleça sobre outra, exercendo perfis de deus ex machina ou de sabotador de acordo com a situação.
Partindo dos exemplos apresentados, é possível afirmar que as mecânicas de storytelling trabalham o caráter lúdico e a interação, explorando novas abordagens por meio do improviso e do planejamento situacional, conferindo valor à própria experiência do jogar.
Mais do que isso, é possível entender que a narrativa – presente tanto na abordagem psicológica que envolve os objetivos individuais e coletivos de uma partida de Dead of Winter: A Crossroads Game quanto nas justificativas malucas que resultam da escolha de uma arte em Dixit –, atua como uma liga capaz de instigar e de fomentar a imaginação do individuo, conduzindo-o por caminhos e insights propícios para o nascimento de histórias nunca antes contadas.