O Nerd se define de várias formas. Uma das mais proeminentes características desta (hoje não tão) rara espécie é o interesse exacerbado sobre determinado assunto, sendo, muitas vezes, este traço, subtendido como O elemento definidor do que seria um "Nerd". Neste sentido, então, poderíamos até mesmo definir que, o sujeito que passa o dia jogando futebol ininterruptamente é, também, um Nerd, certo?
Isso depende.
Ocorre que, acompanhado do interesse quase religioso por determinado(s) assunto(s), o Nerd também sente a quase patológica necessidade de catalogar tudo aquilo que se refere ao seu objeto de interesse, atribuindo qualitativos, graus, históricos e diversos rótulos à toda a gama de itens compreendidos por aquela matéria.
Assim sendo, se nosso amiguinho aficionado por futebol ali do parágrafo lá de cima além de bater a tal bolinha o dia todo e AINDA por cima tiver uma tabela do número médio de passes trocados nas copas do mundo desde 1962, um rank pessoal de melhores meio-campistas do Manchester United e corrigir você, porquê você é burro e disse que o Ronaldo foi comprado pelo Real Madrid por uns € 30 milhões e na verdade foram 43, aí sim você estará diante de um legítimo nerdão do futebol.
Desta forma não é de espantar que no meio dos joguitos de tabuleiro haja uma miríade de classificações para nossos amigos de madeira, papelão e plástico favoritos.
Destas atribuições, duas das mais clássicas sejam a dos jogos Euro e dos Ameritrashes.
O primeiro referem-se a jogos de mecânicas densas, com praticamente a ausência total de sorte, temas pouco relevantes para o desenrolar da partida e componentes de natureza bastante abstrata.
Já os Ameritrashes (hoje em dia chamados de "Temáticos" - spoiler: eu prefiro chamar de Ameritrash mesmo) seriam os jogos vindos da escola americana de jogos de tabuleiro, quase sempre utilizando-se de dados e outros instrumentos de aleatoriedade, EXTREMAMENTE permeados pelo tema proposto e, principalmente, exibindo todo o estilo de produção hollywoodiana que tornou os produtos americanos famosos mundo a fora.
No meio do caminho, porém, existem pérolas como Cyclades.
Cyclades é um jogo maravilhoso onde você e seus amiguinhos irão digladiar-se pelos favores divinos de Poseidon, Hares, Zeus e Athena a fim de construírem suas poderosas metrópoles e, enfim, dominarem as ilhas da região de Cyclades, que caso vocês ainda não tenham pego minhas sutis referências, fica na Grécia.
O jogo também é um excelente exemplo da mistura das escolhas de design das escolas americanas e europeias de produção de jogos. Isto porque Cyclades é um jogo que, apesar de transbordar seu tema por todos os poros, trazer uma produção excepcional (mais sobre isso lá pra frente) e vir cheio de cartinhas e dadinhos dentro de sua caixa ainda faz predominar mecânicas elegantes como leilão e controle de área, além de proporcionar aos jogadores diversos caminhos para a vitória que podem ser praticamente isentos da influência da sorte, o que torna o jogo um grande representante da crescente realidade dos jogos de tabuleiros modernos: os Eurotrashes.

Antes que me sejam jogadas pedras e os ancinhos comecem a ser afiados, eu tenho que deixar claro que Eurotrash não é uma classificação "oficial" reconhecida pelas normas da ABNT, mas é uma forma de descrever um movimento cada dia mais presente na indústria de jogos: a colaboração entre designers de diversas partes do globo, produtoras com maior acesso à meios de produção mais modernos e um mercado cada vez mais ávido por superproduções, jogos que misturam mecânicas clássicas, temas clássicos e ESTILOS clássicos de ambas estas correntes de game design. O que resulta em diversos jogos maravilhosos.
Dentre eles podemos citar o Kemet, Clash of Cultures, Blood Rage, o recente Inis entre diversos outros.
Cyclades, porém, foi minha primeira paixão no gênero.
Quando eu entrei novamente de cabeça no hobby, a pouco mais de um ano, eu me deparei com um mercado recheado de opções MARAVILHINDAS de jogos excepcionais escorrendo pelas frestas do meu computador e um sem número de resenhas, ansiosas em me indicar meu mais novo jogo favorito de todos os tempos.
Nas lojas as caixas imensas e fantásticas de Blood Rage, Mice and Mystics (meu primeiro moderno), Eldritch Horror e tantos outros me deixaram maluco e, com muito controle, eu fui aos poucos indo mais fundo no mundo dos jogos de tabuleiro.
E nessas buscas um jogo que sempre esteve na égide de ser adquirido foi o já citado Blood Rage, primeiro pelas miniaturas lindas, mais tarde pelas mecânicas de controle de área e card drafting e, finalmente pelas diversas estratégias para a vitória que ele parecia oferecer.
Ocorre que, cada uma destas situações ele teve algum jogo passando na frente e pulando para minha coleção. Quando minha sede por jogos bonitos com miniaturas veio eu comprei meu primeiro jogo, o lindo Mice and Mystics. Quando eu quis ter um jogo Euro de respeito o Terra Mystica passou na frente e, por último, no momento que eu quis juntar todas estas experiências num jogo de peso médio eu conheci o Cyclades.
O jogo em si consiste de uma "corrida" para ser o detentor das primeiras duas metrópoles do jogo, mas além de possuir estas você tem que defendê-las por um turno inteiro antes de poder gritar "É TETRA!", num mecanismo estilo Uno! que constrói uma tensão inacreditável na mesa quanto mais o jogo avança.
Para se tornar o senhor destas metrópoles, porém, cada jogador pode escolher diversos caminhos. Você pode tentar conseguir o favor de cada um dos deuses e vagarosamente construir cada uma das quatro partes que integrarão sua metrópole, tornado suas cidades estado mais poderosas no processo, pode buscar os favores de Athena e criar uma metrópole somente com o conhecimento de seus filósofos ou, utilizar-se do amplo poderio militar oferecido pelos Deuses bélicos para dominar as construções feitas pelos outros jogadores e conquistar sua vitória na base da pancadaria.
O que é interessante, porém, é que não existe uma estratégia certa que irá funcionar sempre. Cyclades oferece aos jogadores OPÇÕES válidas e relevantes o tempo inteiro, capazes de mudar a face do tabuleiro o a cada rodada. É possível jogar uma partida inteira de Cyclades sem que haja UM COMBATE sequer, ao mesmo tempo que podem haver jogatinas em que a porrada comerá solta e os jogadores irão sair suados de tanta tensão.
É virtualmente impossível saber qual vai ser o desenrolar de uma partida de Cyclades no momento que ele começa e, ainda assim, os jogadores sentem que em momento algum aquilo que eles decidem fazer está sendo um resultado direto de sua má-sorte, mesmo quando os jogadores precisam jogar dados para resolver suas diferenças, afinal o jogo oferece diversas formas de mitigar o acaso, bem como dá várias chances dos jogadores se recuperarem de situações espinhosas por meio dos diversos mecanismos de balanço do jogo, como a ajuda das cartas, tanto de monstros como de favores divinos e incremento de renda dos jogadores que acabaram ficando mais para trás.

Neste sentido, inclusive, eu tenho que destacar como Cyclades é uma obra de arte, já que se trata de um jogo de controle de área que não necessariamente incentiva os jogadores à expandir e que sempre permite que os jogadores que tiveram um (ou alguns) turnos ruins possam voltar para a partida com chance de vitória, diminuindo o sentimento de que, tudo o que restará a estes é o famigerado "king-making" (quando um jogador que não tem mais chance de vencer acaba decidindo quem será o real vencedor somente prejudicando UM ou mais concorrentes diretos da vitória). Em Cyclades você sempre sente que pode estar a uma moeda, um exército ou a uma carta de tomar para si a liderança do jogo, mesmo que tudo que tenha te sobrado seja uma única ilha e um punhado de soldados.
E é isso que faz do jogo algo tão bom de ser jogado. O grupo fica envolvido, cada lance faz a diferença e cada momento pode decidir a partida. No final do jogo os jogadores vão estar tomando para si metrópoles uns dos outros e construindo outras tantas de forma sorrateira debaixo dos olhos dos adversários, usando cartas para fazer ataques desesperados e ganhando no último segundo.
Uma verdadeira mistura épica do que as escolas americanas e europeias podem oferecer de melhor.
Aliás, em falando-se do que estas escolas oferecem de melhor, preciso aqui destilar um pouco do meu amor pela produção do jogo. Por mais que as miniaturas do jogo produzido em 2009 não se comparem às produções maravilhosas da Cool Mini or Not, é preciso bater palmas para tudo o que vem nesta caixa: um tabuleiro LINDO, talvez um dos mais bonitos da minha coleção, tokens de altíssima qualidade e iconografia excelente, cartas maravilhosas, com belas imagens e acabamento de primeira, miniaturas que, se não são perfeitas, ainda são excelentes e, o que mais me deixa babando neste jogo, as moedas de papelão mais fantásticas da história dos jogos de tabuleiro.
Sério, olha pra isso.
Claro que eu não posso fechar os olhos para os defeitos do jogo. Por não ter um número fixo de rodadas pode acontecer de uma partida se extender MUITO mais do que deveria, o que é sempre um defeito bem grave, na minha opinião, mas essa situação acaba sendo um pouco mitigada pelo fato de que o jogo eventualmente vai atingir uma massa crítica em que será impossível algum dos jogadores não vencer a partida.
Outro ponto baixo do jogo é o fato de que às vezes uma partida vai acabar abruptamente, de forma pouco climática, principalmente quando os jogadores focam-se eu vários aspectos e esquecem daquele outro sujeito que está acumulando cartinhas de filósofos.
No geral, porém, eu não poderia ter outra opinião sobre Cyclades se não a que, se você encontrar, COMPRE.
PROPOSTA: Euro com feel temático de complexidade média.
PONTO ALTO: Um dos leilões mais bem implementados que eu já experimentei.
PONTO BAIXO: O jogo pode se arrastar demais e ter desfechos abruptos.
VALE DESTACAR: A produção é maravilhosa.
SALDO FINAL: Recomendado
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