Esse texto faz parte de uma série, e serve como uma introdução aos board games modernos. Eles apresentam dicas para os novos jogadores, que recentemente descobriram o incrível universo dos jogos de tabuleiro modernos ou board games. Para facilitar, vale esclarecer que nos próximos textos dessa série, qualquer menção a jogos ou jogadores, se refere aos assim chamados board games modernos, e seus entusiastas os boardgamers. Isso é importante para evitar qualquer confusão com outros tipos de jogos como vídeo games, ou outros jogos que não se encaixam nessa categoria de “jogos de tabuleiro”. Porém, é importante dizer que esses limites são amplamente discutíveis.
Também é importante destacar que os textos dessa série são direcionados para novos jogadores. Assim, muito do que será dito aqui é de conhecimento geral, de quem já tem mais tempo no hobby dos board gamers modernos. Mas para os recém chegados as informações do texto são algo totalmente novo. Além disso, a análise dos temas abordados ocorrerá de forma geral, sem o aprofundamento desejável, dada as limitações de espaço. Por isso, são muito bem-vindos os comentários dos experts em jogos de tabuleiro, que venham a enriquecer as informações desse texto. Essa contribuição respeitosa, daqueles que sabem mais, é fundamental para a expansão e fortalecimento do hobby.
Boa parte da comunidade boardgamer começou com o RPG no anos 80, embora alguns “mais maduros” até tenham jogado os “miniature wargames” dos anos 70. E aqui não se pode deixar de mencionar o “Hero Quest” de 1989, que muitos consideram o primeiro board game lançado no Brasil, em 1994. E isso apesar do jogo ser anterior ao “Colonizadores de Catan” de 1995, que é considerado o jogo que deu início a era dos jogos de tabuleiro modernos. Esse aparente paradoxo será melhor explicado ao longo do texto.
Imagem: Ludopedia - Hero Quest
Depois veio o “Magic: The Gahering”, no anos 90, e depois os primeiros anos de jogos de tabuleiro importados em “2000 e alguma coisa”. No período entre 2010 e 2014, o mercado nacional de jogos começou a se estabelecer, e aumentaram os lançamentos de board games por aqui. Por fim, houve um crescimento significativo do hobby em 2017/2019, época em que a grande maioria dos assim chamados recém chegados ingressou no hobby. Essa é a historia de quase todas as pessoas que compõem o nosso atual mercado de board games. Porém, evidentemente, os jogos de tabuleiro, propriamente ditos, são mais antigos. Muito mais antigos.
Jogos de Tabuleiro Ancestrais
A origem dos jogos de tabuleiro se perde nas areias do tempo, durante os primórdios da civilização. Por isso, não é possível precisar com exatidão qual teria sido o primeiro jogo de tabuleiro que foi criado. Nesse aspecto, só pode afirmar qual foi o jogo de tabuleiro mais antigo que chegou até os dias atuais como os que são citados a seguir. Desse modo, é perfeitamente possível que exista algum jogo ainda mais antigo, que se perdeu no decorrer das eras. E mesmo quando se trata dos jogos ancestrais conhecidos, a primazia em termos de antiguidade é objeto de intenso debate (
veja aqui um artigo especial sobre os jogos ancestrais).
Imagem BGG: Mancala
Um exemplo disso é o “Mancala”, que não é apenas o nome de um único jogo, mas sim de toda uma família de jogos, com grandes afinidades entre si e fortes traços em comum. De uma maneira geral, “Mancala” é composto de um conjunto de peças iguais (sementes secas, feijões, contas e assemelhados) e um “tabuleiro”, digamos assim, que consiste de duas ou quatro fileiras de orifícios paralelos.
Ele é jogado passando as sementes de um “buraco” para o outro. Assim, o “Mancala” tem uma óbvia associação com o ato de plantar, e com a agricultura. Isso, a princípio, leva à conclusão de que ele seria tão antigo quanto os primeiros assentamentos humanos fixos. No entanto, essa tese carece de base científica, pela falta de evidências físicas que a corroborem.
Os registros mais antigos do jogo, de que se tem notícia, são bem mais recentes. O jogo está registrado em tabuleiros de argila e rochas esculpidas, encontrada na Etiópia e Eritréia, com datação dos séculos VI e VII d.C.. É claro que a simplicidade dos componentes pode ser uma explicação para essa ausência de evidências físicas. Não faria muito sentido gastar tempo e ferramentas (recursos importantes), para escavar um pedaço de madeira, ou fazer um tabuleiro de argila, quando é perfeitamente possível jogar o “Mancala”, com algumas pedrinhas e alguns buracos no chão. Apesar disso, dos jogos ancestrais, o “Mancala” é provavelmente o mais jogado nos dias de hoje, principalmente na África, Oriente Médio e em algumas comunidades nos Estados Unidos.
Imagem BGG: Jogo Real de Ur
Por outro lado existem jogos que são comprovadamente muito antigos, e que possuem evidências físicas que corroboram a sua ancestralidade, diferentemente do “Mancala”. Esse é o caso do “Jogo Real de Ur”, cujos tabuleiros foram encontrados durante a década de 1920, em escavações arqueológicas da antiga cidade-estado mesopotâmica de Ur.
Esse jogo é tão antigo (acredita-se que ela surgiu entre 2.600 a 2.400 a.C.), que o seu próprio nome se perdeu. Por isso ele é chamado simplesmente de “Jogo Real de Ur”, porque somente a mais alta nobreza poderia dispor do luxo de ter tempo livre para se distrair, ou possuir objetos mais sofisticados, não ligados ao trabalho, como o componentes do jogo. O resto do povo se distraía trabalhando, e possuía basicamente suas ferramentas, instrumentos de trabalho, e talvez alguns ornamentos rudimentares.
Imagem BGG: Senet (jogo completo encontrado dentro da tumba do Faraó Tutancâmon)
Outro jogo ancestral é o “Senet”, que tem origem no Egito e é um possível antepassado do “Gamão”. Os registros mais antigos desse jogo são papiros datados entre 1.000 e 1.500 a. C., aparecendo ainda retratado em várias tumbas egípcias.
Imagem Facebook: Cães e Chacais
Um jogo igualmente popular no Egito foi o “Cães e Chacais”, como ele é modernamente conhecido. Seu surgimento se deu aproximadamente por volta de 2.000 a. C. Esse jogo inclusive aparece em uma cena do clássico “Os Dez Mandamentos” (1956), de Cecil B. DeMille, com Charlton Heston e Yul Brynner.
A LINHA DO TEMPO DA EVOLUÇÃO DOS BOARDS GAMES
Desses tempos imemoriais para cá, muitos outros jogos de tabuleiro foram criados, ao longo dos séculos. Em diferentes momentos, nasceram jogos como o Xadrez, o Go, o Jogo de Damas, o Gamão, variados jogos de cartas e de dados, até o século XX. Nessa época, principalmente na Europa central, os jogos de tabuleiro surgiram como uma alternativa barata e viável, para que as famílias pudessem se distrair, ao longo dos rigorosos meses de inverno. Nessa estação, as grossas camadas de neve e o frio intenso tornavam praticamente impossíveis as atividades de lazer fora de casa.
Essa situação se agravou ainda mais, no período pós II Guerra Mundial, quando boa parte dos países da Europa Central, tais como Alemanha (principalmente a Alemanha), a Áustria, a Polônia, a antiga Checoslováquia, haviam sido destruídos. Isso fez com que as famílias acabassem desenvolvendo o hábito de se reunir para jogar “jogos de tabuleiro”, principalmente na Alemanha, que foi o país mais devastado pelo conflito.
Esse dado é muito importante, porque influenciou diretamente o estilo de jogos europeus, os “eurogames”, ou simplesmente “euros” (nenhuma relação com a moeda europeia). Após o fim da II Guerra Mundial, havia uma real preocupação que a situação posterior a I Guerra Mundial se repetisse, com a Alemanha se reerguendo como potência bélica após algumas décadas, e lançando o mundo em uma eventual III Guerra Mundial. Foi o início da chamada Guerra Fria, que perdurou até o fim dos anos 80.
O receio, pelos próprios alemães de um segundo “Tratado de Versalhes” desenvolveu um sentimento de forte repulsa social a quaisquer elementos bélicos. Do mesmo modo, havia também, uma forte necessidade de se desassociar de absolutamente qualquer coisa, que tivesse a mínima relação com o nazismo, cujas atrocidades ainda eram uma lembrança muito recente, vergonhosa e dolorosa.
Imagem Pinterest: Board Games em Família nos Anos 50
Por outro lado, a Alemanha vivia um período de reconstrução. A gestão de pessoas e gerenciamento de recursos eram os assuntos da pauta, e amplamente discutidos dentro das famílias alemãs. Como não poderia deixar de ser, esse cenário teve forte impacto inclusive sobre os jogos de tabuleiro. Assim sendo, o estilo alemão de jogos de tabuleiro acabou sendo muito mais focado na gestão de recursos, do que propriamente no confronto direto entre os jogadores.
O objetivo dos jogos “euro” não estava focado em derrotar o inimigo, através da sua eliminação por combate e destruição de seus exércitos. O foco era derrotar o adversário pela utilização dos recursos próprios, ou comuns a todos, de uma forma melhor e mais eficiente.
CHEGANDO AOS TEMPOS ATUAIS
Enquanto isso, do outro lado do Oceano Atlântico, os Estados Unidos, uma das duas superpotências emergentes da II Guerra Mundial (a outra era a antiga URSS), se via como uma nação guerreira e orgulhosa de ter vencido a guerra. É claro que o fato dos horrores da guerra terem ocorrido em outro continente, e de nenhuma cidade norte-americana ter sido bombardeada ou destruída, contribuíram muito para isso. O ataque à Pearl Harbor, apesar de covarde, envolveu uma base naval, e não uma cidade.
Esse sentimento ainda levaria os norte-americanos a se envolverem diretamente em dois outros grandes conflitos armados, a Guerra da Coréia e do Vietnam. Isso representava uma busca incessante por barrar a expansão do comunismo e aumentar a esfera de influência mundial norte-americana, principalmente através do desenvolvimento do seu poderio militar.
Por tal motivo, faz todo o sentido, que boa parte dos jogos de tabuleiro americanos, tivesse o foco no conflito direto e eliminação de adversários. Isso inclusive resultou na criação de toda uma categoria de jogos com essa premissa, que foram os “war games”. Tais jogos se tornaram muito populares, especialmente nos EUA, na década de 1970.
Imagem: BGG - Warhammer 40K - um dos wargames mais importantes de todos os tempos
Esse estilo acabou originando, mais tarde, a criação dos famosos jogos “ameritrash”, em que se valoriza o confronto direto entre jogadores, ou a cooperação, e semi-cooperação, deles contra o próprio jogo. O tema é fundamental e sempre muito bem trabalhado. O fator sorte não é tanto um tabu como nos jogos euro e o uso de miniaturas é um diferencial.
Algumas pessoas preferem hoje o termo “amerigame”, por entender que “ameritrash” (lixo americano) é um termo depreciativo. Ele teria sido cunhado para hostilizar os apreciadores desse estilo, como se eles não tivessem imaginação necessária para os jogos abstratos, nem a capacidade intelectual suficiente, para jogar jogos euro. Essa, sem dúvida, é uma besteira sem tamanho e não tem o menor cabimento. Apesar disso o termo “ameritrash” pegou e hoje é utilizado como um contraponto aos jogos “euro”.
A PREMIAÇÃO QUE MUDOU O DESTINO DOS JOGOS
Em 1978 ocorreu um evento muito importante para os jogos de tabuleiro, cujo impacto repercute, principalmente nos dias de hoje. Foi nesse ano que um grupo de jornalistas alemães, entre eles Tom Werneck e Jugen Herz, preocupados com a baixa cobertura da mídia para os novos jogos alemães, resolveram criar uma premiação para o melhor jogo lançado na Alemanha naquele ano. Para isso eles selecionaram um júri, composto de pessoas sem nenhuma ligação com a indústria alemã de jogos, e que experimentariam todos os jogos lançados nos doze meses anteriores.
Nascia o “Spiel des Jahres”, que veio a se tornar, e é até hoje, a mais importante premiação do mundo, nesse setor. Ele é mais ou menos como se fosse um “Oscar dos Jogos de Tabuleiro”. No início essa premiação não era muito organizada. Para se ter uma ideia, houve um ganhador em 1978, “A Lebre e a Tartaruga”, um jogo inglês de 1974, lançado pouco depois na Alemanha pela empresa Ravensburguer. Mas esse “primeiro lugar” precisou ser repetido em 1979, porque em 1978 o grupo de jornalista não conseguiu organizar o evento da premiação.
Apesar desse início nada auspicioso, o fato é que o “Spiel des Jahres” foi crescendo cada vez mais e se tornando cada vez mais relevante para a indústria de jogos de tabuleiro. Posteriormente, em 1989, surgiu a categoria “Kinderspiel des Jahres” (Jogo do Ano para Crianças), dedicada a jogos infantis, e depois, em 2011, a categoria “Kennerspiel des Jahres” (Jogo do Ano para Especialistas) para jogos mais complexos e mais pesados.
Atualmente, apenas a indicação ao “Spiel des Jahres” já é uma certeza de vendas astronômicas. Ganhar o prêmio é a verdadeira consagração, tanto do jogo, quanto do seu designer, e vendas na casa das centenas de milhares de unidades, no mundo todo.
Imagem Google: Spiel des Jahres
No final dos anos 1970 e início da década de 1980, o surgimento dos videogames domésticos, em especial o Atari 2600, começou a diminuir o público, a relevância e o interesse pelos jogos de tabuleiro. Ninguém queria mais passar horas ao redor do mesmo jogo, quando era muito mais legal juntar os amigos e passar a tarde jogando os mais variados jogos de computador e cartuchos de jogos eletrônicos. Durante quase duas décadas, houve um forte declínio da indústria de jogos de tabuleiro. Apenas o fato deles serem muito mais baratos, que sua contraparte eletrônica, parecia impedir que eles ficassem relegados a um nicho de mercado muito restrito de entusiastas saudosistas e colecionadores excêntricos.
CATAN E OS BOARD GAMES MODERNOS
Essa situação perdurou até 1995, quando surgiu um jogo verdadeiramente revolucionário, o “Colonizadores de Catan” ou simplesmente “Catan”. Esse jogo além de excelente também é muito importante. Ele fez um sucesso estrondoso, tanto no mercado europeu, quanto no norte-americano. Esse sucesso foi tanto que as pessoas voltaram a se interessar por jogos de tabuleiro em geral, inaugurando a nova era dos jogos de tabuleiro modernos.
No Brasil, ao longo do século XX, praticamente apenas Estrela e Grow lançavam versões nacionais, adaptadas e não licenciadas, de jogos de tabuleiro internacionais (War/Risk, Detetive/Clue, Banco Imobiliário/Monopoly, Top Secret/Heimlich & Co, entre outros).
O cenário mudou no início dos anos 2000, e excluindo os “jogos clássicos” da Estrela e Grow, havia uma única empresa que lançava jogos de tabuleiro modernos mais recentes. Essa empresa era a Devir Editora, que lançou aqui tanto o “Catan”, quanto o “Carcassonne”, outro verdadeiro colosso dos board games. A Devir já tinha uma longa história, tendo iniciado como uma livraria em 1987, e trabalhava basicamente com histórias em quadrinhos (nacionais e importadas) e com livros de RPG. Mas, com o surgimento desse novo mercado, a empresa acabou migrando para os jogos de tabuleiro modernos.
Imagem: BGG - Colonizadores de Catan
A outra grande editora nacional é a Galápagos Jogos, fundada em 2009. A empresa começou publicando jogos nacionais como “Máfia”, “Brasilis” e “O Útimo Grande Campeão” (que hoje são praticamente desconhecidos). Porém, rapidamente a editora começou a lançar jogos importados, como o “Summoner Wars” e os jogos relacionados à série de TV Game of Thrones (Board e Card Game).
Logo em seguida a Galápagos passou para os jogos consagrados no cenário internacional como “Zombicide”, “Dixit”, “The Resistance”, “Love Letter”, “Dobble”, “7 Wonders”, “Ticket to Ride”, “King of Tokyo”, entre muitos outros, que são campeões de venda até hoje. Atualmente a Galápagos é a maior editora nacional de jogos de tabuleiro modernos. Vale destacar também, que nessa época a Grow, também teve uma rápida passagem pelo mercado de jogos de tabuleiro modernos. Ela lançou os jogos “Puerto Rio”, “Castles of Burgundy”, “Broom Service”, além de edições do “Carcassonne” e do próprio “Catan”. Porém, essa experiência teve curta duração, e a empresa não atua mais nesse setor.
CURIOSIDADES E O MERCADO DOS BOARD GAMES
Antes de prosseguir é preciso explicar uma característica do hobby de jogos de tabuleiro modernos, para que se evitem eventuais confusões futuras. O termo amplamente aceito e utilizado para se referir a essa categoria de jogos é ”board games”, que em tradução literal significa exatamente “jogos de tabuleiro”.
Dessa maneira, o termo “board games” normalmente se refere aos “jogos de tabuleiro modernos”, em oposição ao “classic board games”. Esses jogos clássicos seriam os jogos de tabuleiro mais antigos, tais como “WAR/Risk”, “Detetive/Clue” “Banco Imobiliário/Monopoly”, etc. Assim sendo, de um modo geral, quando se fala em board games, na verdade está se falando em jogos de tabuleiro modernos, que diferem dos jogos clássicos, devido a algumas características específicas, como se verá a seguir.
Existe ainda outra questão que é a abrangência do termo. Board game, ou jogo de tabuleiro moderno, se aplica obviamente a jogos que efetivamente necessitam de um tabuleiro, como “Pandemic” ou “Zombicide”, ou que possuem tabuleiro, mas podem perfeitamente dispensar esse componente, como o “Dixit” ou “Ascension”. Entretanto, "board game" também se aplica aos jogos que não possuem tabuleiro. Esse é o caso dos “card games”, ou jogos que usam exclusivamente cartas, como o “Coup” e o “Pega em 6”. O termo "board games" ou "jogos de tabuleiro modernos" engloba todos esses tipos de jogos.
Imagem Ludopedia: Coup e Pega em 6
Outro fator importante na produção de jogos de tabuleiros modernos diz respeito ao trabalho de tradução e localização. A grande maioria dos board games lançados no Brasil são lançamentos internacionais, que recebem uma versão brasileira, em português e devidamente localizada.
O conceito de “tradução” é amplamente conhecido, mas a “localização”, em termos de jogos de tabuleiro, é um conceito pouco diferente, e que vai um pouco além da “tradução”. A localização envolve pegar o texto que foi traduzido e adaptá-lo da melhor forma possível às características linguísticas e culturais do país em que ele será lançado. Dessa maneira, digamos que o jogo use a expressão “skeleton in the closet” significa “fato embaraçoso ou escandaloso do passado, que uma pessoa prefere manter em segredo”, só que a sua tradução para o português é literalmente “esqueleto no armário”.
Dessa maneira, vamos imaginar que a descrição de um personagem de um jogo tenha a seguinte frase no original: “He has many skeleton in the closet.” A tradução pura e simples da frase seria “Ele tem muitos esqueletos no armário”, Isso não faria o menor sentido para um brasileiro, a menos que o personagem fosse algum “Norman Bates” ou “Hannibal Lecter” da vida. É aí que entrar a localização. Desse modo, a tradução adaptada, ou localizada, passaria a ser “fantasma do passado”, por exemplo. Essa expressão tem um significado, em língua portuguesa, muito mais próximo do que a tradução literal “esqueleto no armário”. Assim, uma boa tradução (e localização) da frase original seria: “Ele tem muitos fantasmas do passado”. Isso é muito mais compreensível, e faz muito mais sentido, para um público falante da língua portuguesa.
UM NEGÓCIO DA CHINA...
No cenário mundial, até metade dos anos 1990, as editoras de cada país produziam localmente seus jogos, e aqueles licenciados de editoras de outros países. Com isso, as tiragens eram bem menores. O crescimento e desenvolvimento dessa indústria acabaram levando a tiragens cada vez maiores, cujas estruturas de produção local não davam mais conta. Nessa mesma época, o mundo assistiu ao enorme crescimento econômico da China, que sempre se baseou na produção em larga escala. No início, os produtos chineses eram sinônimos de “cópias baratas com qualidade ruim”. Mas ao longo do tempo, os chineses aprenderam a lição.
Pouco a pouco as empresas chinesas começaram a investir mais no controle de qualidade, sem deixar de lado a produção em larga escala. O resultado é que se tornou cada vez mais barato produzir o que quer que fosse, na China, inclusive board games. O problema é que as fábricas chinesas só trabalhavam no atacado. Por isso, para atingir os seus baixíssimos custos de produção, eram necessárias tiragens verdadeiramente “gargantuescas”. Nenhum mercado isolado tem demanda suficiente para bancar tiragens dessa envergadura.
Para resolver essa questão, e diminuir ainda mais o custo de produção dos jogos, surgiram as tiragens mundiais de jogos. Essas tiragens atendem a diversos mercados ao redor do globo, e esse é formato padrão de produção atualmente. Em um cenário desses, se um determinado mercado, por exemplo, o brasileiro, perde a oportunidade de participar de uma tiragem de um determinado jogo, ele acaba ficando dependente de uma nova tiragem mundial (também chamada de reprint). Isso pode demorar anos, ou nem mesmo acontecer. Nesse caso, o mercado brasileiro simplesmente fica sem a versão nacional do jogo. O motivo disso é que apenas as editoras locais não têm como bancar uma nova tiragem exclusiva. Esse, inclusive é um acontecimento até comum.
Imagem BGG: UNO Japonês
Primeiramente, essas tiragens mundiais se aplicavam mais aos casos dos jogos iconográficos ou sem dependência de idioma, cuja ausência de texto, permitia a produção indiscriminada dos componentes (cartas, peças e assemelhados), independente do mercado a que ele se destinasse. Um exemplo disso é o jogo “Uno”. Como ele não usa texto escrito, apenas números, desde que não existam variações locais de regras, uma pessoa pode pegar um exemplar do jogo produzido para o mercado do Azerbaijão, que ele não terá problema algum para jogar. Isso favorecia muito a produção em larga escala, e diminuição dos custos de produção, de modo que faz todo o sentido produzir jogos assim na China.
Com o desenvolvimento do mercado de jogos de tabuleiro moderno, as fábricas chinesas começaram a se especializar cada vez mais nesse setor, inclusive na produção de jogos com cartas, e demais componentes, contendo texto. Portanto se pegarmos um jogo como Zombicide, por exemplo, que faz amplo uso de miniaturas, o custo para produzi-las na China é absolutamente imbatível, devido à larga escala de produção e especialização das fábricas chinesas.
Por isso esses componentes são e continuarão sendo, por longo tempo, produzidos na China. Isso não mudará, a menos que ocorra algum fato ou situação imprevista, que altere o atual cenário econômico. Se outro país conseguir oferecer melhores custos de produção, mantendo o mesmo padrão, as editoras internacionais passarão a produzir os board games lá, afinal o dinheiro não tem cheiro, nem pátria.
Imagem: Ludopedia - Zombicide
Desse modo, o sistema funciona mais ou menos da seguinte maneira. A Editora CMON lança o jogo XYZ. Esse jogo faz tanto sucesso, que desperta o interesse de outros mercados estrangeiros de jogos de tabuleiro. A CMON resolve então fazer uma nova tiragem mundial e entra em contato com as suas parceiras em cada país, para ver se elas têm interesse na produção local desse jogo XYZ. Após isso, as fábricas chinesas produzem uma nova tiragem mundial, para atender os mercados dos diversos países interessados no jogo.
Nesse exemplo, vamos dizer que tanto a “Galápagos” do Brasil, quanto a “Bureau de Juegos” da Argentina demonstram interesse em lançar o jogo em português e em espanhol, respectivamente. Uma vez concluídas as negociações, cada editora local tem de pagar a parte que lhe cabe na produção total do jogo. Isso às vezes gera alguns problemas, porque se todas as editoras pagarem corretamente a sua parte, mas apenas uma delas deixar de pagar, ou atrasar, a produção do jogo também atrasa, podendo até ocorrer o seu cancelamento. Então não basta a Galápagos, e todas as outras editoras pagarem certinho a sua parte, porque se a “Bureau de Juegos” atrasar ou deixar de pagar, todo o projeto pode ir para o ralo, ou atrasar muito, o que é o mais comum. Foi isso que aconteceu, por exemplo, com o jogo “Champions of Midgard”.
Depois disso, vem a questão do frete da China até o Brasil, que normalmente é feito por via marítima, até um porto brasileiro, e isso é outra parte sujeita a muitos problemas, com foi o que aconteceu com os jogos “Tsukiji” e “Ancient Terrible Things” da antiga Editora RedBox, atual Buró.
Imagem: Ludopedia - Tsukiji e Ancient Terrible Things
Quando as unidades do jogo chegam ao Brasil, elas ainda têm de passar por todo o processo de liberação aduaneira e pagamento de impostos, que é sempre muito caro, e pode dificultar bastante, e até mesmo inviabilizar o lançamento do jogo, apesar dele já ter chegado ao Brasil, que foi o que aconteceu com o jogo “Lucidity: Seis Faces do Pesadelo”. Uma vez liberado o produto no porto, aí entra a fase da logística e distribuição, até o jogo chegar à loja de jogos de tabuleiro modernos de cada cidade, ou na casa dos apoiadores, para quem comprou em financiamento coletivo.
Vale destacar que o financiamento coletivo é uma forma alternativa de comprar um jogo, sem ser na loja física ou nos sites de venda. Isso é feito através de plataformas digitais como Kickstarter e Catarse, em que as pessoas podem apoiar e viabilizar economicamente a produção de um jogo. Nesse sistema, o apoiador paga antecipadamente o valor do jogo, que muitas vezes é inferior ao valor de lançamento. Alguns meses depois, após finalizada a produção, os apoiadores recebem suas cópias do jogo. Esse modelo funciona tanto para jogos nacionais, quanto para jogos estrangeiros. Outra vantagem do financiamento coletivo é que, normalmente, eles incluem material exclusivo para o jogo, que não é vendido posteriormente, nas lojas.
TERMOS E SIGLAS
Outra questão que pode suscitar dúvidas aos iniciantes é o uso reiterado de algumas siglas como BGA, BGG, Hype e FOMO, pelos jogadores mais experientes. No caso da sigla BGA ela se refere ao boardgamearena.com, que é um site com versões eletrônicas dos jogos de tabuleiro.
Inicialmente isso pode parecer uma contradição, porque jogos de tabuleiro são feitos justamente para reunir os amigos, então não faria sentido, recorrer a um site para fazer virtualmente o que deveria ser feito presencialmente. Ocorre, em primeiro lugar, que nem sempre é possível reunir os amigos, e o isolamento social imposto pelo combate à pandemia de covid19, e um ótimo exemplo disso. Da mesma forma, pode ser que a pessoa esteja em outra cidade, e só possa falar com os amigos através de vídeo conferência. Nesse caso o BGA é uma ótima opção para viabilizar as jogatinas.
Ele também resolve o problema daqueles cujos amigos não curtem jogos de tabuleiro, ou que não gostem dos jogos que a pessoa gosta. Isso porque no BGA é possível jogar com pessoas de todo mundo. Esse site também é uma ótima ferramenta para experimentar um jogo, e ver se ele realmente vale a pena, antes de comprar a versão física.
O BGA tem uma grande variedade de jogos gratuitos. Entretanto, o acesso à maior parte do acervo, depende de uma conta premium que é paga. O plano mensal fica por volta de 4 euros, e o plano anual custa 2 euros, em valores mensais. Esses preços valem muito a pena. Outras opções interessantes são o Tabletop Simulator e o Tabletopia.
Imagem BGG: Stone Age no BGA
Já a sigla BGG remete ao site boardgamegeek,com, criado no início dos anos 2000. Este é provavelmente o principal sites de jogos de tabuleiro modernos do mundo. Nele é possível dar notas aos jogos, e até mesmo fazer comentários a respeito. Ele funciona mais ou menos como o Ludopedia, o principal site nacional de board games, porém em uma escala global. Os boardgamers do mundo inteiro usam o ranking do BGG como uma dos principais recursos para avaliar um jogo, devido ao alto prestígio do site. Por isso, uma colocação alta no BGG, quase sempre é um forte indício de que aquele jogo é bom.
Mas existe uma pegadinha aí. De uma forma geral, principalmente nas primeiras colocações, os rankings da Ludopedia e do BGG coincidem. Isso porque os jogos consagrados, lançados no mundo todo, normalmente ocupam essas posições mais altas. Porém, as discrepâncias aumentam, quanto mais se desce nesses rankings, porque obviamente, nossas editoras não lançaram, por aqui a grande maioria dos jogos do BGG. Por tal motivo, há certa tendência, até natural, de prestigiar mais os jogos lançados nacionalmente, do que aqueles que só existem no exterior. Além disso, para muitos grupos de jogadores, ou para algumas pessoas desses grupos, o idioma estrangeiro é um fator altamente impeditivo. Isso faz com que essas pessoas sempre deem preferência aos jogos que tenham versão nacional. Mas apesar disso, o BGG, ainda assim, é uma excelente referência, para aprender um pouco mais e avaliar melhor os jogos de tabuleiro modernos.
Outra sigla muito utilizada é OOP, ou “Out of Print”. Ela se aplica aos jogos fora de catálogo, que não está sendo produzido atualmente, nem no mercado internacional. Por isso, a menos que a editora original resolva lançar uma nova tiragem mundial do jogo, dificilmente surgirá uma versão nacional dele.
PRINCIPAIS FONTES DE INFORMAÇÃO DE BOARD GAMES
Outra fonte de informação importante sobre jogos de tabuleiro modernos são os diversos canais de board games do Youtube, especializados no assunto, e facilmente localizáveis. Lá os jogadores podem assistir resenhas, receber notícias sobre lançamentos e acompanhar partidas, inclusive ao vivo. Isso facilita para os boardgamers conhecerem e avaliarem melhor os jogos (isso é muito útil antes de uma compra), bem como tirar dúvidas sobre regras. Se a língua inglesa não for um problema, o “Dice Tower” do Tom Vassel também é um canal muito respeitado e uma excelente indicação. Podemos citar também o Ludopedia e seus fóruns onde os jogadores tiram dúvidas de regras, lançamentos, etc.
Existem dois termos que todo o boardgamer deve conhecer e tomar cuidado com eles: Hype e FOMO. O primeiro tem a ver com a comoção que o lançamento de um novo jogo causa, ou uma nova versão de um jogo antigo. Normalmente, a editora envolvida no lançamento é quem fomenta e cria o Hype, como uma estratégia para aumentar o volume de vendas do jogo. Já o termo FOMO deriva da expressão em inglês “fear of missing out”, que significa “medo de ficar de fora”. Em outra palavras, FOMO representa o receio de deixar de participar de uma “onda”, ou de comprar um jogo que todos os outros estão comprando.
Esses dois termos refletem um assunto muito sério, e que podem levar principalmente os iniciantes a comprarem jogos que eles a princípio não gostariam. Isso é feito apenas para que eles se sintam como uma parte mais atuante do hobby, num verdadeiro comportamento de manada.
EDITORAS
Atualmente, a maior editora nacional de board games é, sem sombra de dúvidas, a Galápagos. Abaixo dela estão a Devir, a Meeple BR e a Conclave, que juntas com a Galápagos formam as “Quatro Grandes” do mercado nacional. Existem também outras editoras de porte aproximado como Grok, Mandala, Paper Games, e Buró (Ex-RedBox), e de porte menor como Mosaico, Ludofy e Geek’N’Orcs. Mas, independente do seu porte todas essas editoras têm excelentes jogos, no catálogo.
Portanto, o mercado nacional de jogos de tabuleiro é um setor consolidado do ramo de jogos/brinquedos, com a participação de diversas empresas. Mas ele que ainda carece de uma maior profissionalização, principalmente na parte de tradução e revisão. Essa carência inclusive explica diversas falhas graves, em alguns lançamentos da Galápagos e Conclave (pesquisar Masmorra do Mago Louco, Western Legends, Nemesis, Everdell, entre outros).
Outro problema são os altos preços cobrados atualmente pelas editoras, pelos jogos lançados. Isso dificulta bastante a expansão do hobby e a entrada de novos jogadores. Os preços são um fator fundamental para o aumento das tiragens dos jogos e o conseqüente crescimento e desenvolvimento do nosso mercado nacional. Esse fortalecimento é que viabiliza o lançamento dos grandes jogos internacionais (e suas expansões), também no nosso país.
Por fim, esse texto dá uma visão geral (muito geral) de como é o hobby dos board games é, e de como ele funciona. Esses são os aspectos principais para ajudar a situar todos aqueles que descobriram, recentemente, esse incrível mundo dos jogos de tabuleiro modernos.
Um forte abraço e boas jogatinas!
ESPECIALMENTE PARA VOCÊ SRTA. HELENA BULCÃO!!!!
Iuri Buscácio
P.S. Aqueles que porventura tiverem interesse nos outros textos da série, podem encontrá-los no canal "iuribuscacio", aqui do Ludopedia.