Todos amamos jogos de tabuleiro. Isso é tão óbvio dentro deste ambiente que chega a ser uma redundância. Oras, só estamos aqui porque realmente gostamos disso.
Há diversas razões para gostarmos do hobby de modo geral, não estou falando aqui de um jogo x ou y. Independentemente das nossas preferências em particular, todos compartilhamos o fato de que somos entusiastas do hobby.
Quando jogamos um jogo, uma série de emoções são despertadas na nossa mente, excitação, adrenalina, tensão, euforia, etc., mas às vezes essas emoções borbulhando no nosso sangue infelizmente não são tão boas assim. Ao iniciar uma partida, uma série de expectativas são involuntariamente depositadas naquele cenário. É um jogo novo ou eu já tenho uma certa experiência? É um jogo pesado? Party game? Eu conheço essas pessoas com quem estou jogando? Eu sei como eles jogam?
Até aí, nada demais. Tudo isso é muito natural. O problema é quando algo sai fora de controle.
De uns tempos pra cá, eu venho buscando jogar mais os jogos que eu já tenho ao invés de jogar mais jogos novos poucas vezes. Como muitos de vocês, nesse momento bastante infeliz e particular da história mundial, que estamos vivendo, encontro-me o mais socialmente isolado possível e os boardgames não ficariam de fora dessa equação. Tenho recorrido bastante aos sites e apps de implementações virtuais dos nossos amados jogos analógicos.
E foi aí que a coisa descarrilhou um bocado.
Não é fácil viver isso que estamos vivendo e muita ansiedade é gerada pelo simples fato de existirmos em meio a todo esse pandemônio. Lembra que eu falei que involuntariamente expectativas são geradas ao se iniciar uma partida? No presente momento, recentemente a maioria das emoções ligadas à minha pessoa jogando um jogo são referentes a uma espécie de válvula de escape, uma droga.
Eu sou um cara careta. Não bebo, não fumo, não uso tóxicos, as pessoas acham que eu sou de igreja, nada contra, mas nem isso eu sou, eu sou careta por ser careta mesmo, eu não curto nada disso (nada contra quem curte). Obviamente todos temos uma válvula de escape para essa realidade mesquinha que muitas vezes nos atormenta, assim como pontos de fraqueza. Muitas vezes eles se convergem, esse é o meu caso e, mais especificamente, esse é o meu caso com os jogos de tabuleiro.
Ingressar nesse novo hobby foi pra mim, mais do que uma novidade, um recomeço. Como muitos, eu vim do Magic. Joguei (tecnicamente ainda tenho uma quantidade boa de cartas competitivas) Magic ativamente, competitivamente, por mais de 10 anos. Se considerar os tempos de street magic molequinho, mais de 15. Houve um período da minha vida em que meus piores demônios da minha caixa de Pandora emocional iriam escapar em meio a esse hobby. Eu comprava compulsivamente, eu era um mau perdedor e pior, eu era um mau vencedor também. As pessoas se sentiam incomodadas e se afastavam de mim pouco a pouco, seja eu perdendo ou ganhando. Eu só fui perceber de fato quando já era quase tarde demais.
Comprar compulsivamente foi um mau hábito que herdei do hobby anterior, venho trabalhando essa questão e já discutimos o assunto algumas vezes no meu canal (textos como Precisamos falar de FOMO e Guia consciente de compras de novos jogos). Você que está acostumado com o canal sabe que o assunto é sério quando o texto não tem figurinha, memes e o uso excessivo de uma certa palavra que hoje propositalmente não vou escrevê-la aqui.
O outro fantasma do natal passado que veio me atormentar recentemente e que me motivou a escrever esse texto no improviso na forma de um depoimento, meio que um desabafo, é justamente essa hipercompetitividade.
Esse monstro se manteve adormecido por um tempo até a ansiedade tomar conta da situação e bater na porta. O problema é quando ele sai junto à válvula de escape e até o faz de conta se torna real, no pior sentido da expressão.
Não é segredo nenhum aqui que eu gosto muito de Kingdom Builder. Só no canal tem três textos. Se você já procurou sobre esse jogo por aqui e entrou em algum fórum, há uma razoável chance de você já ter visto meu avatar. Uma das maiores vantagens de se jogar digitalmente é a evidente acessibilidade. É muito prático, você pode jogar em qualquer lugar com acesso à internet e com pessoas do mundo todo. Só o meu queridinho Kingdom Builder eu joguei algumas centenas de vezes, coisa que eu dificilmente teria feito de modo tradicional analógico, mesmo que não estivéssemos restringidos por questões de pandemia e tudo mais. Simplesmente há uma série de pequenos rituais e burocracias ao se colocar um jogo na mesa. Que atire o primeiro meeple quem nunca ficou com preguiça de fazer um setup de um jogo a ponto, inclusive, de desistir de jogá-lo e optar por algo mais "prático".
O lado sombrio da situação é um pequeno detalhe de interface muito comum nessas plataformas digitais, que tem por objetivo puro e simples apimentar a competitividade sadia entre os jogadores, criando um ranking, uma espécie de meta jogo. Não se trata do jogo em si, agora, além dos pontos de vitória dentro de cada partida, você também ganha pontos que vão te posicionar entre os melhores daquele jogo, toda a honra, fama e glória e....
eu estava de volta às drogas de novo. Magic the Gathering tudo outra vez...
Depois que selei meus espectros do passado e migrei para uma vida nova nos jogos de tabuleiro, eu não ligava mais se eu tinha perdido de lavada, mesmo o jogo sendo meu e eu acabei de ensinar para a pessoa que me ganhou de lavada. Estava tudo bem, agora tenho um novo formidável oponente que em troca me ensinou que ainda preciso me aprimorar muito nesse jogo. Que sensação maravilhosa revisitar com uma perspectiva totalmente nova um jogo que você já jogava com os olhos vendados. Quanto mais aprendemos, mais descobrimos que não sabemos nada.
Só que não havia mais testemunhas. Éramos somente várias pessoas que nunca vi pessoalmente na minha vida e eu, "protegido" por uma tela de computador. Dizem que você coloca a mão na consciência quando você se pergunta se o que você está fazendo deixaria a sua mãe orgulhosa. Mãe, que bom que você não me viu jogando online e que bom que você não lê os meus textos. Era no mínimo vergonhoso.
Não me entenda mal, eu não xingava diretamente os outros jogadores. Não pelo chat, pelo menos. Meus vizinhos seguramente não entenderiam o motivo de tanta ira. Se suspeitassem que eu estava me dirigindo a alguém aqui em casa, poderiam chamar a polícia. Não me dirigia a ninguém aqui em casa além de (felizmente???) uma tela de computador.
Eu xingava os jogadores, eu xingava o jogo, a sorte envolvida, tudo. Eu previa tudo de pior que poderia acontecer em meio ao jogo e era óbvio que acontecia do jeitinho que eu profetizei. Era como se eu estivesse implorando para que aquilo acontecesse daquela forma numa espécie de surto masoquista. "MAS ERA ÓBVIO QUE ELE IRIA COMPRAR ESSA CARTA E FAZER ESSA JOGADA!", "CLARO, O QUE EU MAIS PRECISAVA AGORA ERA DE MAIS UMA CARTA REPETIDA!", frases seguidas de elogios muito sutis destinados a aqueles inocentes aleatórios e suas respectivas progenitoras. Eventualmente uns socos na mesa e uns pisões furiosos no chão, como se isso fosse canalizar a minha raiva injustificável.
Quando você vence uma partida, você ganha alguns pontinhos no ranking e sobe meia posição (isso não vale nada em termos práticos, só vale pra quem acredita que vale, como muitas coisas nessa vida). Quando você perde, é um abismo sem fim, você cai dezenas de posições. Nessas circunstâncias, qual é a coisa mais óbvia a se fazer? Se afastar, repensar os seus valores, refletir as suas atitudes e possivelmente até escrever um desabafo em uma comunidade virtual que te acolhe?
OBVIO QUE NÃO, VOLTAR PARA AQUELA ARENA (trocadilho intencional) E RECUPERAR MEU PRECIOSO RANKING QUE ME FOI TOMADO!!!!
Fora de meu juízo perfeito, eu não raciocinava mais direito, ao ponto de fazer a jogada errada com muita frequência e só perceber no momento exatamente posterior ao clique de "confirmar jogada". Uma decadência moral seguindo uma espiral descendente análoga a um helicóptero que ficou sem combustível em meio ao ar.
Vendo aqueles números caindo era como se o mundo tivesse ficado sem chão. Aquele número, aquela abstração repleta de neuroses depositadas pela face mais vergonhosa do meu ser, era a coisa mais importante do mundo naquela armadilha mental. Quando ele subia, era o êxtase tomando conta de cada poro do meu corpo. Quando ele descia, era como se eu acordasse no meio da sarjeta com um cachorro de rua lambendo a minha cara fedendo a álcool barato. O que fazer para curar a ressaca? Beber mais, naturalmente.
Acho que até meu antigo eu do Magic se afastaria de mim. Talvez xingaria junto comigo, mas certamente os outros se afastariam. O conforto de estar "protegido" atrás de uma tela de computador dá um poder indevidamente aproveitado pelas pessoas comuns. Não à toa, todo mundo é durão na internet, mas muitas vezes uma flor de pessoa presencialmente.
Era evidente que eu estava depositando uma série de frustrações pessoais externas naquela conquista artificial. "Se eu vencer esse jogo, minha vida vai dar uma guinada!". Se o Brasil for Hexa campeão, a gente vira potência mundial... Eu apostei todas as minhas fichas emocionais em um slot da roleta e nem ganhando o prêmio eu quitaria minhas dívidas.
Foi aí que a diversão acabou. Eu não tinha mais um jogo, adversários, um momento de lazer e uma inteiração saudável. Ao invés disso, parecia mais com uma área de guerra, inimigos, caos generalizado e depressão.
Ao final de cada partida, um pequeno ritual me incomodava absurdamente e foi aí que o cachorro lambendo a minha cara na sarjeta me fez acordar por um momento de breve lucidez e redigir esse depoimento. Sempre que a partida terminava, os outros jogadores digitavam duas letrinhas humildemente. Às vezes eu ganhava, às vezes eles ganhavam, mas a sensação era sempre ruim. Às vezes era uma raiva obsessiva, às vezes era apenas um vazio.
GG
Às vezes eu nem digitava nada. Às vezes eu ainda me esforçava pra demonstrar um mínimo de esportividade (da tela do computador pra fora) e respondia sem muita energia "gg". Dentro da minha cabeça era mais algo do tipo "seu filho da $%@#, vai tomar no #*, seu @##%&!@$% de $%¨¨%!". Desculpe por isso, mãe.
Curiosamente o meu primeiro reflexo não era nem xingar gratuitamente o pobre coitado que não fazia ideia do que estava acontecendo em meio aos divertidamentes dentro do meu centro de comando (todos eles eram a Raiva).
Meu primeiro reflexo em meio a essa formalidade digital era uma frase em inglês, diga-se de passagem, que vinha à minha mente. Em inglês provavelmente em resposta ao que significam essas duas letrinhas em seu idioma de origem: "good game". Eu sempre pensava assim:
"it wasn't a good game!"
Claro que não era, eu perdi. Perdi tudo, perdi a casa, o carro, a mulher, as crianças, os amigos, tudo. Tudo estava ali naquele slot da roleta em meio àquela partida.
O pior é que quando eu ganhava, eu não tinha vontade de xingar, ou de dizer que não foi um bom jogo. Eu simplesmente não tinha vontade de dizer nada. Eu não tinha nem vontade de jogar de novo, na verdade, mas eu jogava mesmo assim. Precisava voltar ao pódio, mostrar para o mundo que, dentro daquela competição mental que eu criei pra mim e que ninguém mais sabia que eles estavam competindo comigo, eu era o "melhor". Continuar a correr atrás da cenoura que eu nunca iria alcançar, presa a uma vara de pescar amarrada nas minhas costas.
E nesse breve momento de lucidez percebo que, mesmo ganhando, eu não era melhor do que ninguém.
Definitivamente, não foi um bom jogo.
O jogo nem é ruim. Se fosse ruim, eu não o teria jogado mais de 200 vezes.
Ruim fui eu e não por tê-lo jogado mal.
GG.