O VERSO DO TILE
Sonhos, suor e sofrimento varridos para debaixo do tabuleiro
Há tempos ando encucado com algumas coisas do mundo dos board games e uma dessas coisas foi o grande motivo de me tirar das milhões de tarefas domésticas que se reproduzem como insetos em tempos de isolamento social (com uma criança de quase 6 anos cheia de energia) para escrever este texto!
Vamos lá... tentarei seguir um fio lógico que nos faça construir juntos uma rota comum até o ponto de vitória final. O primeiro passo é abrir o Ranking de jogos da Ludopedia. Para facilitar, basta dar uma clicadinha
aqui! Abriu? Estou aguardando...
O segundo passo é retirar desta lista o melhor jogo feito em toda a história do universo e do multiverso: Projeto Gaia! Brincadeiras à parte, talvez ele seja um jogo que não se enquadre no tema deste texto (ou pode ser apenas uma concessão minha pelo nível afetivo com o jogo, coisa que ocorrerá com muitos de vocês no decorrer do texto). Agora vamos lá percorrendo jogo a jogo em ordem crescente do ranking!
Iniciamos com o irmão mais velho de Projeto Gaia. Certamente é mais justo dizer irmã mais velha, já que estamos falando dA Terra (substantivo feminino) Mystica. Jogo fantástico, mecânicas maravilhosas, componentes lindíssimos com uma arte bem produzida e que se não existisse talvez não teríamos jamais ouvido falar do primeiro colocado do ranking. E o tema remete a criaturas fantásticas de mitologias europeias, como gigantes, anões, bruxas etc.
Pulemos para o próximo colocado: Terraforming Mars. Para mim, outra obra de arte do mundo dos board games e tem como temática a existência de um Governo Mundial, bem ao estilo dos filmes hollywoodianos de apocalipse, cujas orientações se dão por um núcleo central desse governo que em nosso imaginário nunca é latino, africano ou asiático. Se vocês fecharem os olhos e se puserem a imaginar as lideranças deste Governo Mundial (façam o exercício, ninguém vai ficar sabendo do resultado além de você!), em que local do mapa elas residiriam? Qual seria a cor de suas peles ou suas origens étnicas? Enfim... só um exercício que gostaria que fizessem com honestidade! E que bom se o resultado do exercício não saia com o esperado! Talvez você seja um ponto fora da curva! Mas até então as coisas estão leves... Mas, há de se convir, que a beleza em Terraforming Mars está em seu rigor científico, extremamente concatenado com as mecânicas! Este Governo Mundial acaba sendo bem coadjuvante. Sigamos.
Próximo? Great Western Trail. E que jogão, minhas/meus amigas(os)! Qual o tema? Somos vaqueiros latifundiários no Oeste norte americano, num período em que houve uma expansão das linhas férreas para impulsionar a colonização e o escoamento da produção. Consequentemente, houve a reboque uma voraz expansão da mineração e da fronteira agrícola nos Estados Unidos, apropriação de terras nativas e a geração de um montante de lucro exorbitante para os colonizadores. E foram justamente estes dois principais atores, pecuaristas e empresários da indústria ferroviária, que engendraram um dos maiores genocídios de povos nativos da história! Neste board game, somos convidados a experimentar de forma “divertida” o papel de ser um desses atores e esquecer o que sempre esteve por trás dos interesses destes grupos econômicos. Foram quase 30 milhões de vidas ceifadas de forma extremamente violenta, com episódios comuns de tortura, estupros e escravidão. Fora as remoções forçadas, como o triste episódio do Caminho das Lágrimas. Mas esta parte não está no jogo, é claro! (É vem o Western Legends aí!)
Vamos para Brass Birmingham? Outro jogo de temática europeia em que somos postos a figurar como empresários de Birmingham entre os séculos XVIII e XIX. Neste período, a fome era lugar comum entre os trabalhadores operários das grandes empresas em Birmingham (e em quase toda a Europa), que trabalhavam em péssimas condições de trabalho, com jornadas de 14 a 16 horas diárias que podiam ser cumpridas por idosos de idade avançada ou crianças de cinco, seis ou sete anos de idade, num contexto repleto de doenças, subnutrição, violência e pobreza. Se antes os grandes empresários apoiavam ideias iluministas para protestar contra o poderio da Igreja e defender o livre comércio, agora que suas empresas estavam com os cofres transbordando não convinha mais evocar ideários de liberdade, igualdade e fraternidade. O que valia era expandir os lucros, retrair direitos civis e trabalhistas e colocar o ônus da produção nas magras costas dos trabalhadores e trabalhadoras. Um período certamente difícil em que milhões de seres humanos na Inglaterra tiveram como último recurso a revolta. Tivemos uma grande greve em Manchester (1810), a “Marcha da Fome” em Londres (1817), o famoso comício de Saint Peter’s Field (1819) com quase 100 mil participantes, não sem uma forte onda de repressão financiada pelo empresariado (aquele o qual representamos em Brass) que cobriu as ruas da Inglaterra de sangue e corpos de trabalhadoras e trabalhadores revoltosos (incluindo crianças e idosos).
Darei um pulinho no ranking e incluirei Clans da Caledônia aqui, junto com o Brass. Clans da Caledônia traz as mesmas inquietações de Brass Birmingham, pois, na Escócia, as coisas não foram diferentes. Dá uma pesquisada na enorme greve dos tecelões em Glasgow em 1804. Veja os motivos que levaram 40 mil trabalhadores na Escócia a se recusarem a pôr para funcionar os seus teares. Não deixe de ver também como foi a reação do patronato, dos “Clans da Caledônia”, quando viram os seus trabalhadores rurais sendo estimulados pelas grandes revoltas das fábricas nos centros urbanos. A desumanidade na Escócia não foi tão menor assim que na Inglaterra no Século XIX. Novamente, estamos cá sonhando com riquezas, nobrezas e domínios.
Próximo? Puerto Rico, um clássico difícil de enjoar e que estará sempre no topo dos board games! Bem... o que dizer da história originária de Porto Rico? Pouco! Na colonização espanhola, praticamente todas as etnias locais, exímias pescadoras artesanais e agricultoras, foram escravizadas ou mortas. Como bem fizeram os espanhóis no período colonial, não pensavam duas vezes antes de destruir, saquear e desaparecer com qualquer traço cultural nativo dos locais em que chegavam! Era tudo “coisa do demônio”! O pouco que se sabe da cultura originária de Porto Rico deve-se aos taínos, povos nativos da Mesoamérica que habitavam diversas outras localidades para além do que hoje é Porto Rico. Não veremos isso no jogo, é claro! Há prefeito, capitão, construtor, comerciantes vendendo colheitas e construindo prédios, mas não haverá qualquer traço taíno para ao menos lembrarmos de uma riquíssima cultura ancestral que habitou aquela ilha! Os escravizados são gentilmente chamados neste jogo, fantástico por sinal, de “colonos”. Há até um navio negreir... ops! Navio de “colonos”!
Opa! Mage Knight! Mais um ótimo jogo com tema de fantasia medieval, como Terra Mystica! Acho uma delícia ler e experimentar a fantasia medieval. Minha trajetória nos jogos começou no início da década de 90 com o RPG, especialmente com a vinda de AD&D para o Brasil. Aliado a isto, vieram os livros de Tolkien (menção honrosa ao Silmarilion), que foram me afundando cada vez mais neste universo de fantasia! Diante da grandiosidade desse jogo e da horda de jogadores que adoram fantasia medieval - como eu - percebemos um forte enviesamento do mercado ao consumo de jogos com esta temática. O problema não está na fantasia medieval em si, mas o xis da questão talvez esteja na assimetria brutal entre os jogos que foram produzidos com a temática da fantasia medieval e com a fantasia folclórica dos locais que fogem do eixo Europa–América do Norte. Quando os jogos retratam temas de outras localidades, como Puerto Rico, por exemplo, somos convidados a experimentar a posição de nobres aristocratas deste eixo, que movem os seus... “colonos... para produzir e exportar riquezas (para onde? Europa!). É dose! É quase como não ter para onde correr!
Que as caiporas, boitatás, mulas sem cabeça, sacis e curupiras sobrevivam à homogeneização do mercado! Um salve aos designers nacionais que lutam para trazer a luta dos “colonos” pela libertação, a resistência dos capoeiras e as figuras míticas folclóricas para a nossa mesa de jogo! Que um dia sintamos o mesmo medo de enfrentar um Mapinguari, assim como trememos na base ao enfrentar um Beholder!
The Castles of Burgundy? Novamente, somos aristocratas, mas agora no período medievo na França. Nada de novo no front que não possa se encaixar com o que já foi comentado anteriormente.
E vamos fazendo, pouco a pouco, este exercício de rolar o ranking da Ludopedia e se perguntar quais são os jogos eurocentrados e quais são também os jogos que nos colocam num lugar de diversão figurando como aristocratas, barões, grandes empresários, imperadores, colonizadores (de Catan?) ou saqueadores disfarçados de exploradores. A cada jogo, se questione o que há no verso do tile da história, quem suou, trabalhou, morreu, sofreu ou foi violado para sustentar os prazeres de experimentar os pontos de vitória da vida de todos esses nobres agentes dos board games, que continuam a se reproduzir a cada dia.
E, por fim, se questione o motivo de haver tão poucos jogos que contam a história de resistência e lutas dessa gente. Há até jogo ambientado no Brasil em que experimentaremos ser um monarca brigando para ser imperador! Mas espero que eu esteja enganado e que os aprendizados históricos com este board game superem o desprazer de ser um monarca no Brasil imperial, onde a escravidão corria solta (como hoje ainda o é nos grandes latifúndios desse Brasil rural).
E Mombasa e a escravidão? Me dói saber que um jogo maravilhoso daquele poderia tratar a escravidão de uma outra forma. Não mudar o que foi a escravidão na temática do jogo, mas pô-la como uma mecânica que traga incômodo e que mostre a perspectiva do escravizado. Talvez essa pequena mudança não tirasse em nada o brilho do jogo! Certamente não falta criatividade para o grande designer de Mombasa! Spartacus!? Somos levados a controlar nobres romanos que escravizam pessoas, se divertem com a morte de gladiadores e ludibriam o povo com pão e circo, usando como temática (que deu até o título do jogo) a bela história de um escravo que se revoltou contra o Império Romano e lutou para a libertação de seus companheiros e companheiras escravizadas. Mas o que fizeram com esta história no board game é de chorar... Usaram da fama da história de Spartacus (e da série) para vender jogos e nos pôr como jogadores experimentando a vida de escravocratas sádicos cuja diversão depende da morte de seus dominados, apagando completamente qualquer historiografia sobre a luta de Spartacus contra a escravidão!
Sigamos... Tikal, um dos meus jogos favoritos (Top 3, com El Grande em segundo e Projeto Gaia em primeiro!), me traz a experiência de ser um explorador que se apropria e comercializa bens arqueológicos de um determinado povo para ganhar prestígio... Esse imaginário de explorador sequestrou a memória etnográfica de uma série de sociedades, pois as materialidades de suas memórias, ao estilo Indiana Jones, foram depositadas nos grandes museus europeus para enaltecer o imaginário de nobres aristocratas sobre “as misteriosas sociedades tribais e atrasadas”. E ainda há hoje, por mais que não televisionem, um enorme comércio ilegal de bens culturais antigos, como urnas funerárias, obras de arte, escritos e bens sagrados de muitos povos (inclusive ainda viventes). Veja também que, em nosso hobby, quando uma outra cultura que na História foi saqueada e invisibilizada é tratada num boardgame, ela é trazida com uma visão extremamente distorcida e rasa, como, por exemplo, o novo jogo do Eric Lang chamado Ankh. Que pedrada na cosmologia do Kemet!!! Eric Lang parece ser mestre em dar essas pedradas, como fez com um dos Kami de Rising Sun, que nem da cultura japonesa era!
Percebam que não estou falando em momento algum de forma negativa da diversão, mas sim sobre QUAL TEMA ambienta a nossa diversão ou sobre como determinados temas foram tratados na mecânica. Muitos desses jogos poderiam ter as MESMAS MECÂNICAS, mas tratar as temáticas de forma completamente ou um pouco diferentes, para demonstrar que no verso do tile da história os colonos são escravos, os beholders estão matando os sacis, as sociedades industriais estão arrancando o couro de crianças a idosos para fazê-las de correias nas máquinas do Século XIX e por aí vai. As mulheres nas temáticas dos jogos, então, quase nunca aparecem!
Mas há jogos que, de forma fantástica, nos trazem estes temas, mas com a amargura de entender como é sofrido viver num contexto de crise, catástrofe e desespero, sem glamurizar o sofrimento de ninguém e sem nos fazer mexer de forma leve, livre e solta os nossos “colonos” para ganharmos pontos de vitória. Olha só o This War of Mine!!! Sensacional aquela bad que fica no fim do jogo! Uma obra prima, ao meu ver!
E se você pegar as 100 primeiras colocações da Ludopedia, verá que provavelmente a grande maioria dos jogos trazem temáticas com estas interrogações de que trato no texto. Posso chutar que 80% deles? Certamente, se fizer este exercício com os 100 primeiros jogos do Ranking da Ludopedia, o resultado não deixará de ser absurdamente alto (as avaliações são subjetivas, é claro!).
Bem... como acontece com tudo, no mundo dos board games não seria diferente. Somos frutos de uma cultura eurocêntrica. Temos Grécia, Roma, França, uma pá de Iluministas e o escambau, como nossas referências e bases fundadoras de nossa sociedade moderna/ocidental (e esquizofrênica). Os board games modernos possuem forte origem europeia e o caminho que precisamos trilhar é longo para mostrar que em todos os lugares do mundo – inclusive na Europa - há coisas muito bonitas a se experimentar que não sejam controlar reis, escravocratas, empresários e imperadores. O próprio mercado consumidor, com um empurrãozinho das editoras, força a reprodução exaustiva destes temas. Muitos designers acabam alterando um rico tema para conseguir a vendagem de seus produtos (afinal, é preciso pagar as contas). É dureza, por exemplo, ver um jogo em desenvolvimento que originalmente tinha como a temática quilombolas lutando contra coronéis, virar um jogo de adolescentes abduzidos para um mundo obscuro lutando contra zumbis devoradores de cérebros e pizzas!
Por fim, não posso deixar de comentar sobre um episódio que aconteceu comigo e que teve um resultado um tanto inesperado. Tento desenvolver um board game com minhas parcas e iniciantes habilidades de designer amador. Circulei um questionário para avaliar aspectos do jogo e explicando o seu tema. O jogo é inspirado na cosmologia Guarani, em que indígenas (a agricultora, a pescadora, o caçador e o pajé), cada um protegendo um recurso chave para toda a humanidade (os solos, as águas, a biodiversidade e os saberes tradicionais ancestrais), precisam proteger a sua terra indígena contra a invasão de fazendeiros (que queimam florestas, destroem locais sagrados e desertificam as terras), reavivando os poderes dos espíritos da natureza, buscando materializar a profecia Guarani da “Terra sem Males”. Uma das últimas perguntas deste questionário era se o entrevistado sentia algum tipo de resistência, incômodo ou desinteresse por board games que traziam temáticas locais, latinas ou de povos tradicionais, que quase sempre ficam de fora em nosso hobby. As respostas possíveis eram: “sim”, “não” e “talvez”. Das 22 respostas, 8 foram “sim” (36%), 7 “talvez” (32%) e somente 1/3 respondeu “não” (acertei as porcentagens aproximadas?).
A amostra é pequena? Sim! Pequeniníssima, mas já dá indícios de que até as nossas vontades mais genuínas, como a vontade de experimentar diversão e de sentir alegria num jogo, podem ser política e socialmente conduzidas. A intenção deste texto não é demonizar a diversão através de nenhum jogo por mim aqui citado (muitos eu tenho e jogo bastante!), mas simplesmente tentar plantar uma semente de interrogações que nos faça respirar um pouco enquanto nos questionamos se a alegria gerada em nosso mundo dos board games tem cor, origem, classe e gênero específicos.
E, caso a sua resposta seja sim, o que terá no verso deste tile não revelado que ainda resistimos em não valorizar em nosso hobby?
Aos que se identificaram com as questões deste texto, sigamos juntos tateando nos labirintos desta saga, onde ainda engatinho, remoendo as minhas próprias e eternas contradições!
(A)braços a todas e todos, fiquem em casa, se cuidem e tenham uma solidária diversão!