Eu sempre fui muito eurogamer. Adoro puxar e empurrar cubos. Troco uma miniatura de plástico toda produzida por um cubinho de madeira sem sal sem pestanejar. Nunca liguei muito para o tema, eu gosto mesmo é da mecânica, da lógica, do puzzle.
Apesar disso, naturalmente nem todos os jogos do gênero me chamavam a atenção. Um dos quais eu muito relutei em conhecer por pura resistência e preconceito é este jogo do qual vos falo neste presente momento, senhoras e senhores. Pasmem!
A resistência se dava principalmente em função do tempo de jogo, como perfeitamente apontado no excelente
review do
Shut Up and Sit Down sobre o jogo. Muitos também ecoavam em uníssono: "Ah, mas o
app é muito melhor! É mais prático, o jogo faz todas as contas pra você. Você deixa toda a burocracia, o tal do
bookkeeping, e o manejo de todas as pecinhas e cartas, também conhecido como
fiddling, de lado e foca no que realmente interessa". Tudo isso reforçava para que eu mantivesse certa distância do jogo físico.
Particularmente nunca fui um seguidor cegamente fiel dos rankings de jogos de tabuleiro, sejam aqui ou no irmão gringo, o BGG. É fato que eles chamam muitíssimo a atenção, afinal, quem não gostaria de jogar o supostamente melhor jogo do mundo na opinião de uma galera, que não eu? Estou falando com você, Gloomhaven. Gosto é uma particularidade muito subjetiva. Não quero pagar de hipster contra o mainstream, mas o que seria do verde se todo mundo gostasse de azul? (no pun intended)
Entretanto, é lógico que, quando o jogo atrai uma comunidade tamanha, algo de especial esse jogo tem. Nesse sentido, um mínimo de curiosidade, interesse, ou ao menos, respeito esse jogo deve despertar. Não é qualquer jogo que atinge o topo do ranking por acaso, não é mesmo?
(no dia 25 de fevereiro de 2006, o usuário MarcMagus avaliou o clássico Jogo da Vida no BGG com uma nota 65535 de 10... bom, "funcionou")
Sendo assim, decidi dar uma chance ao Through the Ages. Antes de comprar, como de costume, fui fazer o dever de casa. Em meio às pesquisas, eu assisti a um vídeo de uma partida completa + explicação (5 h de vídeo) no canal gringo Heavy Cardboard, especializado em jogos pesados. Para a minha surpresa (ou talvez não), eu assisti o vídeo inteiro e fiquei maravilhado. Depois daquela epopeia, eu terminei o vídeo estasiado e apenas uma palavra saiu da minha boca:

Achei o dito cujo por um preço razoável e ele não poderia ter chegado em melhor hora: às vésperas do isolamento social. Acontece que eu sou daqueles que adoram jogar jogos solo, mesmo aqueles que não foram feitos para serem jogados solo, mas que dão para fazê-lo, os assim chamados multiplayer solitaire. Ninguém aqui em casa toparia jogar esse monstrengo, é complexo demais para um pessoal que passou por um perrengue danado para aprender a muito custo a jogar Kingdomino. Eu sabia que tinha que ser solo mesmo. Ganhei e perdi todas as partidas (a vá!?). Eu poderia tê-lo jogado no aplicativo, no computador, mas a sensação tátil de pegar nas cartas, empurrar e puxar os cubinhos é indescritível.

Eu joguei não uma, não duas, mas 4 partidas em 3 dias. Já deixava o jogo arrumado na mesa porque sabia que iria querer jogá-lo de novo no dia seguinte. Ora
bolas, mas afinal de contas, o que tem de tão bom nesse jogo que leva umas boas 3 horas (às vezes menos, mas muitas vezes mais) e você jogou 4 vezes consecutivas?
Acontece, meu caro, ou minha cara, que esse jogo é um dos felizardos exemplares que, assim como Brass, além de ter sobrevivido ao julgamento do tempo, teve a oportunidade de ser agraciado com uma nova versão, quase que uma década depois, completamente revisada a partir de uma base de dados de milhares de partidas e feedbacks de sua base de fãs muito dedicada. O Vlaada (designer do jogo) não deu bobeira, ele fez o dever de casa direitinho também, escutou a voz do povo e mandou muito bem. Não à toa, cá estou eu dedicando meu tempo (que poderia estar sendo usado para jogar mais essa maravilha de jogo) só para passar a palavra adiante. Este não é um texto patrocinado, é só uma forma de agradecimento simbólico mesmo.
(Vlaada e o que humildemente considero sua obra prima)
Tá, Luis, cheguei até aqui e você mal falou do jogo em si...

. Verdade, quase me esqueço disso

. Primeiramente, parabéns por ter chegado até aqui. Se você não fosse capaz de ler esse texto, esse jogo certamente não seria pra você. O livro de regras é excelente, mas tem muita informação. Eu não vou ensinar a jogar o jogo, já há uma infinidade de tutoriais bons na internet, além do próprio livro de regras que vem na caixa. Em português, temos o do
Siga o Coelho que ficou muito bem organizado.
Estou aqui para tentar expressar um pouco melhor o sentimento que se tem ao jogar esse jogo, assim como ajudá-lo a identificar se esse jogo é realmente pra você ou não. Não tem nada de errado em gostar ou deixar de gostar desse jogo. O que não falta é jogo por aqui

.
Em duas palavras, esse jogo tem equilíbrio e eficiência. Funciona como as engrenagens de uma máquina.
Os mais conservadores dirão que há cartas que são melhores do que outras, claro, claro, ou ainda que a própria expansão traz correções para algumas cartas do jogo base. Nenhum jogo é perfeito, senhores. O que temos aqui, todavia, é um modelo de simulação de produção e consumo onde tudo faz sentido e a progressão de seu desenvolvimento ocorre organicamente. O jogo possui centenas de cartas, mas todas elas seguem um padrão evolutivo no decorrer do jogo de forma muito natural. As contas batem, nada parece muito fora de contexto, extremamente desequilibrado, roubado, "apelão", em português claro.
A mecânica de passagem de eras faz com que todos os aspectos do jogo sejam relevantes a todo o momento. Você tem que se preocupar com a agricultura, produção de ciência, minérios, consumo, trabalhadores disponíveis, etc., etc. E tudo faz sentido mesmo. Tudo está intrinsecamente conectado. Variáveis devidamente amarradas e interdependentes entre si. Amigos, isso é um espetáculo de design de jogos e só se alcança um patamar desses com muita experiência, inteligência e inúmeros testes. Um jogo desses não surge de um dia para o outro. Leva uma década para essa maravilha tomar forma e acredite, vale a pena a espera. Ô se vale.
O mais impressionante é que, diferentemente do que se espera dos jogos típicos de civilização, esse jogo não possui um tabuleiro central, apenas tabuleiros contadores de pontos e tabuleiros individuais. Ele é inteiramente baseado em cartas, mas ainda assim, você sente que não está faltando nada nesse jogo e ele tinha que ter sido feito da forma como é. Apesar de baseado em cartas, a sorte é mitigada em termos da experiência e, mesmo assim, não há um caminho único para a vitória. Você tem que se preocupar com um pouquinho de tudo. Praticamente todas as cartas do jogo são exibidas ao longo da partida, o que muda é a ordem com que elas aparecem e isso faz toda a diferença. Isso garante certa previsibilidade, mas sem tornar o jogo "scriptado", como gostam de falar.
Outra coisa que me deixou com o pé atrás antes de me entregar ao jogo é a presença de conflitos diretos. O famoso "
take that" ou
"toma essa" em terras tupiniquins. Bom, sim e não. Depende do que você considera por "
take that". Há conflitos diretos sim, você pode, dentro do contexto do próprio jogo, "agredir" seu adversário ou ainda "declarar uma guerra" contra o mesmo. Acontece que, diferentemente dos conflitos mais tradicionais, a defesa tem mais recursos para se manter de pé e tanto o atacante quanto o defensor sabem disso. O que ocorre na prática é uma espécie de Guerra Fria, onde todos estão se armando, mas a ameaça é mais potencial do que prática. É muito mais diplomacia do que guerra propriamente dita.
É certo que é um jogo onde o mais fraco vai acabar se tornando bem mais prejudicado, gerando um efeito bola de neve e uma possível avalanche. Mecanismos de
"catchup" dificilmente vão te salvar se você já estiver muito atrás. Esse não é um jogo para os fracos. Isso é tão verdade que dentre as ações disponíveis no jogo, há expressamente indicada a ação de desistir. Exatamente, você consome uma ação no jogo para desistir formalmente. Você não pode simplesmente dar um
"rage quit".
(╯°Д°)╯︵ ┻━┻
Mas se você conseguiu chegar até o final desse texto e curtiu a viagem, acredito que você deva dar uma chance a esse jogo, independentemente da plataforma, seja no app, Pc ou cópia física se você está a fim de passar umas boas horas movendo cartas e cubinhos pra cá e pra lá (literalmente).
Então para fecharmos com uma análise mais sucinta, em tópicos:
Se você gosta de:
- Jogos longos e que provocam decisões difíceis, que requerem uma dose de análise (propenso a AP)
- Jogos com aspecto de multiplayer solitaire, ainda que com uma certa dose de interação direta
- Fazer contas
- Curva de aprendizagem
- Jogos com tema de história, personagens reais
- Cubinhos e ficar mexendo em uma infinidade de pecinhas pra cá e pra lá
- Science b...!
Você deveria considerar dar uma olhadinha nesse jogo

. Agora,
se você gosta mesmo é de:
- Miniaturas
- Rolamento de dados
- Jogos rápidos e dinâmicos
Talvez essa não seja uma boa opção para você

.
Eu sou o Luis Perdomo, obrigado mais uma vez por ler meu texto. Espero que tenha gostado da análise.
Críticas, comentários e sugestões, fiquem à vontade.
Forte abraço e até a próxima.
Obrigado pela leitura.
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