No nosso canal, agora vamos também fazer entrevistas por escrito com pessoas envolvidas com o desenvolvimento de jogos de tabuleiro no Brasil. O objetivo é o de conversar sobre questões comuns e os desafios colocados para a produção de jogos não apenas aqui no país, mas que também reflitam o amadurecimento de uma escola de designer brasileira, por assim dizer.
Assim, para a primeira entrevista, convidamos o designer Valter Bispo (
valter_bispo) para falar um pouco sobre o seu promissor protótipo “Quilombolas – A Guerra de Palmares” e de como ele enxerga a temática brasileira nos jogos de tabuleiro. O resultado não poderia ser melhor e esperamos que vocês também gostem e comentem ao final, pois ficaremos bastante felizes em ampliar a conversa.
Agradecemos muito ao Valter, que foi super solícito e nos disponibilizou as imagens que ilustram a entrevista.
Segue a entrevista, na íntegra:
Valter, você poderia falar um pouco sobre o seu protótipo “Quilombolas – A Guerra de Palmares”?
O jogo é inspirado no contexto histórico vivido ao longo do século XVII no Quilombo dos Palmares. Nele, cada jogador comanda um grupo de quilombolas com o objetivo de se tornar a maior liderança de Palmares. Para isso, os jogadores deverão conquistar influência liderando os mocambos (povoados) da região, ajudando os escravizados em fuga a chegar em Palmares e combatendo os capatazes, que tentam impedir o fortalecimento do quilombo. Esse é o primeiro jogo de minha autoria e a sua ideia surgiu em 2012, no final da minha graduação em design gráfico. Porém, foi somente em 2018 que eu tomei coragem para mostrá-lo a outras pessoas e tenho trabalhado no seu desenvolvimento desde então.
Já é possível falar em expectativa de lançamento?
Sim. Estou trabalhando para lançá-lo de forma independente no primeiro semestre de 2020, via financiamento coletivo.
Houve contato com alguma editora?
Houve, mas nenhum vingou. Enquanto de um lado, parte do público me perguntava constantemente sobre o lançamento, do outro, nenhuma editora demonstrou real interesse. Foi isso que me fez buscar mais conhecimento e apoio para conseguir publicá-lo de modo independente.

Já temos alguma indicação de idade, número de jogadores e tempo de jogo?
O jogo vai de 2 a 5 jogadores, dura em torno de 60 minutos e é para acima de 14 anos. Entretanto, vou incluir algumas variantes básicas no manual para facilitar a jogabilidade entre adolescentes mais novos. Isso porque existe uma procura de professores de história para usá-lo em ambiente escolar.
Há algum artista gráfico envolvido com a produção da arte?
A arte da caixa do protótipo foi feita pelo Pedro Machado (@p.lopz) e a arte final está sendo desenvolvida pela Rafaela Líbano (@goomydesign). O design gráfico é de minha autoria.
Como você pensa na produção do seu jogo em relação aos componentes?
Boa parte dos componentes são peões (meeples) e serão feitos em mdf, assim como os turbantes, que são encaixados nos peões pretos e servem para identificar os quilombolas de cada jogador.
Como tem sido a recepção do protótipo nos eventos especializados?
Desde a primeira vez que o Quilombolas esteve em um evento, em abril de 2018, a recepção foi excelente e tem se mantido assim. Já tive a oportunidade de levá-lo a vários eventos no Rio de Janeiro (Castelo das Peças, Fábrica das Peças, Game of Boards, Joga com o Clube BG, Oficina do Playteste e Mansão das Peças). Já participei também de 2 edições do Diversão Offline na área de protótipos (uma no Rio e outra em SP). Hoje em dia, também tenho sido convidado para apresentá-lo em eventos ligados à educação, inovação e cultura negra, o que me deixa imensamente feliz.

Você poderia falar um pouco sobre a temática do jogo?
O Quilombo dos Palmares foi e é o maior símbolo de resistência negra à escravidão do Brasil e um dos maiores de toda a América. Criado no final do século XVI por pessoas negras fugidas dos engenhos de açúcar para a Serra da Barriga (atual estado de Alagoas, antiga Capitania de Pernambuco), Palmares tornou-se uma forte ameaça ao sistema implantado no Brasil colonial devido à sua articulação social e militar. No seu auge, possivelmente, chegou a ter cerca de 20 mil habitantes, um número expressivo para a época. Ao chegar ao quilombo, os negros chegavam à sua Pequena Angola (Angola Janga, como Palmares era chamado pelos seus quilombolas) e lá reencontravam os seus costumes e tradições. Hoje, a Serra da Barriga é considerada Patrimônio Cultural do Mercosul.

O jogo incorpora alguma experiência narrativa?
Não, a narrativa se dá pela explicação e imersão nas regras.
Como você considera a importância da temática da história do Brasil nos jogos de tabuleiro?
Crucial e urgente! Somos uma sociedade plural e complexa, ainda carente de entender a si própria e aos meandros de sua própria história. Os jogos, assim como o cinema, a música e as artes plásticas, por exemplo, também são um instrumento de educação e cultura. Infelizmente, boa parte do mercado de jogos ainda não enxerga dessa forma e retroalimenta o padrão branco europeu nos temas e no game design. Isso gera um fenômeno intrigante: falar de Brasil, no Brasil, é ser diferente. Um jogo sobre europa medieval não geraria tanta curiosidade quanto um jogo sobre quilombo, por exemplo. E ser diferente significa se destacar, ou seja, jogos que retratem a história e a cultura do Brasil, além de educar e gerar conhecimento e reflexão, atraem o público pela falta de representatividade que só é revelada quando um jogo desse tipo aparece.

Segundo sua opinião, temas complexos, como escravidão, racismo, feminismo, patriarcalismo e colonialismo podem ser problematizados por meio dos jogos de tabuleiro?
Podem e devem. Na verdade, com um olhar um pouco mais apurado podemos reparar que alguns desses temas já estão presentes nos jogos de tabuleiro, mas sem nenhuma reflexão subjacente. "Puerto Rico" é sobre colonização e exploração de mão-de-obra escrava, mas não traz nenhum senso crítico consigo. "Mombasa" trata sobre o imperialismo europeu na partilha da África, mas não traz nenhum senso crítico consigo. "Navegador" exalta as expansões marítimas portuguesas, mas não traz nenhum senso crítico consigo. Há, pelo menos, uma dúzia de jogos europeus que exaltam os seus "grandes feitos" e não dão a mínima atenção se irão mexer com assuntos sensíveis a outros povos. Nesses jogos ambientados fora da Europa, você está explorando a terra e levando recursos consigo. Não há nenhuma menção à cultura e história desses povos, nem sequer nas ilustrações. No fim, quem tiver explorado mais ou melhor, vence. Agora, repare em jogos sobre cidades europeias, tais como: "Lisboa", "Coimbra", "Troyes", "Orleans", dentre outros. Neles, de um modo geral, você está construindo a cidade, fazendo-a prosperar e adquirindo cultura e prestígio. As ilustrações mostram seus povos e não há exploração ou retirada de recursos (ouro, pedras preciosas etc.). Uma visão totalmente diferente, não? Há pessoas que defendem esse narcisismo eurocêntrico, argumentando que o tema não importa, o que importa é o jogo ser bom. Não compartilho dessa visão. Jogos são sobre histórias e histórias podem ser plurais, inspiradoras, respeitosas e inclusivas.

O marcador do primeiro jogador é uma referência à estátua de Zumbi dos Palmares (que fica aqui em Salvador, no Pelourinho), esse e outros personagens importantes da história de Palmares aparecem no jogo?
Sim. No início do jogo, cada jogador recebe um objetivo individual de um personagem histórico: Zumbi, Ganga Zumba, Aqualtune, Dandara ou Acotirene. O próprio público pediu que houvesse personagens. A princípio, eles dariam habilidades diferentes, mas isso deixava o jogo desnecessariamente mais complexo. Só depois de vários testes entendi que o importante era ter personagens e não habilidades. Por isso, transformei os personagens em objetivos individuais.

Quais mecânicas são incorporadas em “Quilombolas – A Guerra de Palmares”?
Pegar e entregar, controle/influência de área, movimento ponto-a-ponto, rolagem de dados e um sistema diferenciado de rolar e mover para a movimentação automática dos capatazes. Mecanicamente, a principal graça do jogo está nesse sistema de movimentação dos capatazes, que surpreende os jogadores e torna as partidas mais desafiadoras.

Quais seriam as ações e objetivos no jogo?
O objetivo do jogo é conseguir mais influência do que os demais jogadores para se torna a principal liderança de Palmares. Há 4 formas de conseguir influência: 1) ajudar os fugitivos a chegar em Palmares, tornando-os novos quilombolas; 2) combater os capatazes; 3) liderar os mocambos (povoados) em Palmares; 4) cumprir o objetivo individual do seu personagem. As ações são: mover os seus quilombolas (pelos mocambos e/ou pelas rotas de fuga) e rolar um dado quando for combater um capataz (essa ação não depende apenas de sorte, pois é possível prever qual será a força do capataz antes de lutar).

Você poderia narrar um pouco sobre as dificuldades específicas no desenvolvimento e produção desse jogo?
A maior dificuldade, sem dúvida, foi a minha inexperiência no processo. Foram muitas idas e vindas até conseguir refinar as regras. As pessoas diziam que o jogo estava bom, mas o bom também é inimigo do ótimo. Eu sabia que o jogo precisava de certos ajustes na jogabilidade, porém não sabia exatamente como fazê-los. A movimentação dos capatazes, por exemplo, sempre foi um ponto elogiado, mas ela era complexa demais. Os jogadores gastavam mais tempo para entender para onde o capataz deveria ir do que pensando na sua próxima jogada. Na tentativa de simplificá-la, havia sempre o risco e o medo de deixá-la sem graça. Precisei estudar e testar bastante, além de ouvir e aprender com o público e com quem entende mais de game design do que eu. Sigo dessa forma nas questões de produção também.

Como você espera que seja a recepção em relação ao seu lançamento?
O processo de desenvolvimento do jogo me leva a crer que a recepção será ótima. Ainda assim, mantenho os pés no chão sabendo que ainda tenho bastante trabalho até lançá-lo, e na certeza de que, se meia dúzia de pessoas se divertirem jogando, já vou considerar esse projeto muito bem sucedido. Agradeço pela oportunidade de falar sobre o meu trabalho e acompanhem as novidades do Quilombolas pelas redes sociais. Seguimos criativos!