PUBLICADO EM http://onboardbgg.com/2015/06/10/meeple-talk-bruno-cathala/
ON BOARD: Primeiramente, queremos agradecer pelo seu tempo em ceder esta entrevista e dizer que seu trabalho é extremamente admirado no Brasil.
Poucos designers de jogos vivem exclusivamente desta atividade. Vamos começar do início: sua experiência como Engenheiro de Materiais ajudou de algum modo no processo de criação e desenvolvimento de jogos?

BRUNO CATHALA: Sim, efetivamente, minha antiga profissão teve e tem ainda uma forte influência sobre minha forma de trabalhar.
De fato, eu trabalhava com pesquisa e desenvolvimento, e a metodologia de trabalho é exatamente a mesma: partir de uma ideia de base; validá-la através de um campo de experiência; analisar os resultados e fazer os ajustes necessários; e redigir o relatório final.
Enfim, hoje eu me apoio sobre 18 anos de experiência industrial e aplico as mesmas metodologias, e com sucesso.
ON BOARD: Você trabalha com frequência em parceria com outros autores, o que não é uma prática muito usual neste meio. Quais as vantagens e desvantagens do trabalho cooperativo no que diz respeito à criação de jogos?
BRUNO CATHALA: Criar é duvidar. E duvidar a dois é bem mais confortável do que duvidar sozinho. Além disso, quando se tem êxito, é muito mais bacana estar feliz na companhia de um amigo do que sozinho.
Trabalhar em dupla é um bom modo de explorar caminhos para os quais nunca teríamos ido sozinhos. É um bom modo, igualmente, de se fortalecer.
ON BOARD: Dois novos jogos seus em parceria com Antoine Bauza saindo este ano: 7 Wonders: Duel ePequeno Príncipe. Um é baseado em uma franquia de jogo já estabelecida, o outro é baseado em um clássico da literatura. Quais as diferenças de abordagem ao trabalhar com o mesmo parceiro em projetos tão distintos?
BRUNO CATHALA: Os dois projetos são, de fato, bem diferentes.
Sobre 7 Wonders: Duel, Antoine queria fazer um jogo totalmente novo no universo de 7 Wonders, seu sucesso internacional, mas dessa vez, mais do que uma expansão, ele queria criar um jogo específico para dois jogadores. Ele começou então a pensar a respeito, mas não se sentia muito à vontade no que se refere ao game design com princípios específicos para dois jogadores. Foi então que ele me propôs trabalhar com ele nesse projeto. Ele me escolheu justamente porque parece que eu sou considerado na França uma espécie de especialista de jogos para dois jogadores! Obviamente, eu aceitei imediatamente com entusiasmo.
Quanto ao Pequeno Príncipe, foi um pouco diferente. Nós já tínhamos trabalhado juntos em um primeiro jogo no universo do pequeno príncipe. Este jogo foi acolhido, pelo menos na Europa, de forma muito simpática. Além disso, nós ficamos sabendo que uma animação em longa-metragem ia ser lançada em 2015 no cinema, baseada no romance de Saint-Exupéry. Fomos postos em contato com a equipe francesa do filme, e foi assim que nós ficamos encarregados de fazer o jogo do filme! Enfim, um novo jogo no universo do pequeno príncipe, mais que, desta vez, deve corresponder à história contada no filme. Um belo exercício de estilo, destinado a um público familiar e que, além disso, vai ser simplesmente magnífico do ponto de vista visual.

ON BOARD: Quando e como você dá o projeto de um novo jogo como encerrado? Como é a abordagem em relação às grandes editoras?
BRUNO CATHALA: Para mim, em fase de protótipo, um jogo é concluído quando eu começo a encadear partes sem precisar fazer modificações. Enfim, quando eu começo a jogar só por prazer, sem ter necessidade de analisar o que não é ainda perfeito.
É somente nesse estágio que eu começo a contatar editores, tentando partilhar com eles meu entusiasmo pelo projeto. Mas, aí, mesmo se eu estiver contente com o equilíbrio obtido no protótipo, o autor deve estar disposto a fazer novas modificações para ir ao encontro dos desejos do editor, quando esses são pertinentes, é claro!
ON BOARD: Você criou expansões para muitos de seus jogos. Para você, quando um jogo pede uma expansão? Quais são as consequências no que se refere à complexidade e ao custo dos jogos?
Expansão de Five Tribes
BRUNO CATHALA: Minha abordagem em relação às expansões é sempre a mesma:
– Elas correspondem antes de tudo a uma vontade pessoal, ou seja, elas se aplicam apenas aos jogos que eu jogo regularmente. E, necessariamente, após dezenas, às vezes até centenas de partidas, ocorre um momento em que eu começo a desejar novos desafios. É nesse momento em que eu reflito para ver o que é possível adicionar ao de jogo de base.
– Uma expansão não deve complexificar o jogo. Ela deve, no entanto, trazer elementos suficientes que obriguem os jogadores a quebrarem os hábitos adquiridos ao longo de suas partidas com o jogo base. Como resultado, isso deve lhes dar a impressão de jogar um novo jogo, mas sem se esforçar demais com novas regras.
Obviamente, se tudo isso for possível sem que o preço final seja muito elevado, tanto melhor. Mas esse não é um critério de base que eu levo em conta para esse tipo de trabalho.
ON BOARD: Falando em expansões, Abyss terá uma em breve. Aliás, os fãs imploram mais material para este universo subaquático fabuloso. O que você pode nos adiantar sobre o futuro do mundo de Abyss?
BRUNO CATHALA: Essa expansão vai permitir descobrir uma nova família de Aliados: os Kraken. Aliados poderosos, já que eles podem tomar a cor de sua escolha. Muito útil para recrutar rapidamente os Senhores mais poderosos! Mas, evidentemente, haverá contrapartidas: esses krakens vão gerar Nebulis, belas, porém, tóxicas pérolas negras. Ao final da partida, cada Nebulis dará um ponto de penalidade. Essa é a penalidade básica, mas aquele que a tiver, terá uma penalidade suplementar de 5 pontos!
Criador e criatura!
Acrescento que uma nova Guilda de Senhores adentrará as profundezas Abyssais: os contrabandistas. Evidentemente, esses contrabandistas permitem agir sobre as Nebulis (dá-las aos adversários, transformá-las em pérolas brancas etc). Acrescentemos a isso dois novos Senhores em cada uma das cinco guildas iniciais, tem tudo para renovar o jogo de base!
ON BOARD: Cada vez mais, vemos no mercado reedições de jogos out of print. Só este ano, teremos Caylus, El Grande, Tigris & Euphrates, Carson City etc. E seu Mission: Red Planet terá nova edição pela Fantasy Flight. Qual seu envolvimento e grau de decisão nesta nova versão?
BRUNO CATHALA: De fato, é uma verdadeira tendência que eu também tenho observado.
Para Mission: Red Planet, foi a FFG que nos abordou. O projeto nos entusiasmou de imediato, e essa foi a oportunidade, em parceria com a equipe de desenvolvimento da FFG, de fazer algumas pequenas modificações interessantes, indo no sentido de ter um pouquinho mais de controle sobre o jogo. Conseguimos também ampliar o número de jogadores, que é agora de 2 a 6. O que foi muito bacana foi o trabalho de mãos dadas com a equipe de desenvolvedores da FFG. Um verdadeiro brainstorming enriquecedor, mas com um controle total de nossa parte em relação ao equilíbrio final.
ON BOARD: Já que falamos em Mission: Red Planet, trabalho seu com Bruno Faidutti, vamos falar de Raptorque está vindo aí. Um jogo card driven com posicionamento tático dos personagens? Adoro o conceito. O que mais você pode revelar sobre Raptor para o público brasileiro?
BRUNO CATHALA: Raptor é um jogo para dois jogadores, assimétrico (os dois campos não dispõem nem dos mesmos elementos, nem dos mesmos objetivos). Foi criado em parceria com Bruno Faidutti. Um jogador joga com os cientistas, o outro com os Raptors. Os cientistas desembarcam em uma ilha ainda infestada de dinossauros. Seu objetivo: capturar três filhotes ou adormecer sua mãe. Os Raptors defendem seu território do agressor. Para ganhar, eles devem fazer três filhotes escaparem ou eliminar todos os cientistas da ilha.
Algumas cartas do jogo Raptor
O sistema de jogo é muito simples, mas cada escolha é crucial. As partidas são bastante rápidas (menos de 20 minutos), o que permite encaixá-las facilmente.
Acrescento, por fim, que as ilustrações são obra de Vincent Dutrait e que elas me agradam de forma especial!
ON BOARD: A questão da substituição dos escravos em Five Tribes teve grande repercussão. Entendemos que existe uma minoria que se incomoda com este tema à mesa, mas existe um outro grupo que pensa ser importante colocar aspectos reais até que para sejam discutidos e pensados. Vivemos este debate por uma década com Puerto Rico. Qual sua posição a respeito?
BRUNO CATHALA: Sobre essa questão, meu ponto de vista evoluiu ao longo do tempo.
Primeiramente, eu fui verdadeiramente surpreendido de ver essa polêmica. Simplesmente porque Five Tribesnão é, de forma alguma, um jogo que faz apologia à escravidão. É um jogo que se passa no universo das mil e uma noites e, em cada conto das mil e uma noites, há escravos, com papéis importantes. Jasmine, emAladim, é ela própria uma escrava. Além disso, o universo das mil e uma noites é um universo fictício. Resumindo, na medida em que se está em um universo fictício, onírico, no qual a presença de escravos é o padrão, não há nenhuma razão válida para que isso se torne um problema.
Saem os escravos, entram os faquires
Eu nunca me permitiria, por exemplo, fazer o mesmo jogo, com escravos, ambientando a história, por exemplo, num universo de exploração de campos de algodão.
Mas a polêmica se ampliou sem que me incomodasse mais do que isso. Pelo mundo todo, existe cada vez mais pressão de integristas do politicamente correto, e isso tende a me irritar. Então, eu não dou importância a esses extremistas. Fora de questão mudar o que quer que seja para essas pessoas.
Posteriormente, eu recebi diretamente em minha caixa de e-mail alguns depoimentos muito pessoais – depoimentos de jogadores me dizendo mais ou menos a mesma coisa:
– Nós gostamos do teu jogo, muito;
– Nós não te pedimos para mudar nada nesse jogo, nem mesmo os escravos;
– Mas eis o motivo pelo qual, ao mesmo tempo em que gostamos desse jogo, ele nos fere e nos deixa desconfortáveis; tudo acompanhado de uma história familiar pungente na qual o avô era ainda escravo.
Por fim, eu refleti de outra forma. Five Tribes é um jogo, não uma mensagem política. Os escravos são simplesmente cartas “joker” que permitem fazer o que a gente quer. Podemos facilmente substituir por qualquer outra coisa sem que isso nos cause alguma preocupação em termos lúdicos.
Esses depoimentos realmente me comoveram, e na medida em que eles vinham de pessoas realmente afetadas pelo fato em sua vida pessoal, eu então tomei a decisão, em respeito a eles e de acordo com aDOW, de substituir os escravos por faquires.
ON BOARD: Para mim, Five Tribes foi o melhor jogo lançado em 2014. O jogo, aliás, recebeu diversos prêmios. O mecanismo da mancala foi implementado magistralmente. Esta ideia surgiu quando? E quando você pensou em sua aplicação temática?
BRUNO CATHALA: Obrigada pelos elogios, isso dá gosto!
Na verdade, esse jogo saiu da minha imaginação de uma só vez, assim, em menos de uma semana. A ideia básica era efetivamente a da utilização do mecanismo da mancala e, em torno desse mecanismo básico conhecido, tudo se estabeleceu de forma bastante simples e espontânea. É geralmente um bom sinal!
Por outro lado, o protótipo inicial situava-se no Antigo Egito, mas, como a DOW já havia publicado um jogo com essa temática (Cleópatra e a Sociedade dos Arquitetos), tendo-me como co-autor desse jogo, decidimos mudar o universo. O das mil e uma noites nos pareceu especialmente apropriado.
ON BOARD: Podemos esperar novidades ainda na franquia Cyclades?
BRUNO CATHALA: Sinceramente, eu acho que nós já examinamos tudo o que poderíamos oferecer aos jogadores no universo de Cyclades. Acrescentar algo levaria ao risco de tornar o jogo complexo e indigesto.
ON BOARD: Você tem algum jogo preferido ou que jogue com frequência?
BRUNO CATHALA: Eu jogo regularmente Five Tribes, mas também Abyss, Mr. Jack, Cyclades ou Mow.
Confesso ter um carinho especial por Five Tribes, que eu considero não como meu “melhor” jogo, mas como meu trabalho mais bem sucedido como game designer.
ON BOARD: Bruno Cathala, foi uma grande honra conversar com você. Muito obrigado pelo seu tempo. Saudações calorosas em nome de seus fãs no Brasil.
BRUNO CATHALA: Eu que agradeço por essa entrevista. Todo o meu carinho aos jogadores e jogadoras do Brasil. Espero um dia ter a oportunidade de visitar seu lindo país!
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NOTA DO EDITOR: Agradecimentos especiais aos “On Boarders” Fernando Celso Jr. e Bianca Melyna, sem os quais esta entrevista não teria sido possível.
TRADUÇÃO FRANCÊS/PORTUGUÊS E PORTUGUÊS/FRANCÊS: Bianca Melyna (Portfólio de Bianca Melyna)