ou: Uma Hora Dixit Também Cansa
“Carcassonne é tão diferente, né?! E Coup, já jogou? É genial! Agora, sensacional mesmo é um jogo chamado Dixit, conhece?”
Se você já falou alguma coisa parecida, seja anos atrás ou semana passada, então você já esteve na posição de novato (ou novata!) no mundo dos board games. Não tem pecado nenhum nisso, todos já passamos por lá! E é verdade mesmo que esses jogos todos são ótimos – Dixit, por exemplo, até hoje figura na minha estante como um dos meus board games mais queridos!
Mas que é bonitinho ouvir essas coisas, é. Para um veterano do hobby, é como admirar uma criatura inocente, pura e ingênua que mal sabe como as coisas estão prestes a ficar selvagens. “Espera conhecer Terra Mystica...”, pensa o veterano sobre aquela alma fresca e radiante que acabou de se maravilhar com Small World.
Sim, é mesmo muito legal esse negócio de board game. É um hobby. E um hobby extremamente enriquecedor, diga-se de passagem. Que bom que você finalmente o encontrou. E boa sorte, porque é pra vida toda.
Mas é claro que eu não acho que você seja completamente iniciante na área
(afinal, olha onde você está lendo este texto!). Essas pessoas existem, sim (e são extremamente bem-vindas ao hobby!), mas há grandes chances de que você, especificamente, tenha crescido jogando pelo menos Jogo do Mico, Sobe-Desce ou Ludo com sua irmã mais nova. Xadrez com aquela sua tia culta quando ela vinha de longe te visitar. E baralho com sua mãe – Buraco, pra ser exato –, que fazia questão de te massacrar sem dó nem piedade nas noites de domingo.
Não? Bom, comigo foi assim.
Você – ou serei eu de novo? – provavelmente passava as tardes chuvosas na casa dos primos jogando Banco Imobiliário (e surrupiando notas de dinheiro do banco) ou Jogo da Vida. Jogo da Vida, inclusive, é chatíssimo, mas você nem percebia.
Com aquele seu primo competitivo, a onda era jogar WAR – quiçá a versão Império Romano – a madrugada toda. Sem objetivos. O jogo terminava com a dominação global por parte de um dos exércitos. Meu primo e eu, pra você ter uma ideia, colocávamos um terceiro exército como NPC só pra dificultar as coisas e, facinho, facinho, varávamos a noite toda sem que os dados deixassem aquele último território ser conquistado pra podermos finalmente dormir.
E Imagem & Ação? Esse era pros dias festivos mesmo. Não precisava nem da desculpa da chuva. Sempre um favorito lá na casa dos meus pais, esse é um jogo que divide a civilização em dois tipos de pessoas:
os que leram O Hobbit e O Senhor dos Anéis e os que não leram os que jogam desenhando e os que jogam fazendo mímica. Admito que já transitei entre os dois lados, mas pertenço ao time
Desenho por tradição.
Não podemos esquecer de Perfil, Master (ou Quest, dependendo da idade que você tem), Detetive e/ou Scotland Yard (que é bem melhor), Interpol, Uno, Twister (conta?)... jogo era que não faltava. Grow, Estrela, Hasbro, Mattel e até Xalingo fizeram seus dias mais felizes.
Só que aí, numa bela noite de lua crescente de janeiro, você conheceu seu primeiro
jogo de tabuleiro moderno (wow, se isso rolou mesmo numa noite enluarada de janeiro, você se arrepiou agora, admite!). A pessoa que te apresentou deve ter inclusive usado o famigerado nome ‘board game’. E então, tudo mudou.
De repente, todo um novo universo se abriu pra você.
“Será possível mesmo que não havia dados naquele jogo? Não tinha trilha? Algo de errado não está certo.” Se uma ou mais palavras como ‘genial’, ‘fantástico’, ‘brilhante’ ou ‘caraaaacamaluuuuco!’ surgiram na sua cabeça enquanto jogava aquela primeira partida tímida de Catan, 7 Wonders ou Survive!, então você sabe do que eu estou falando.
Seu primeiro board game vai ficar pra sempre na memória e no coração. Afinal de contas, ele foi um divisor de águas. Ele fez com que sua relação com os jogos de tabuleiro da sua infância cambaleasse. Fez você questionar WAR. Fez você hesitar com Imagem & Ação. Com sorte, destruiu para sempre sua relação com Jogo da Vida (sério, esse jogo é
chatíssimo).
Não é que você tenha parado de gostar dos jogos de tabuleiro tradicionais. Ainda é muito divertido jogar WAR no modo de dominação global ...com aquele primo específico. E Quest é sempre garantia de sucesso ...com aquela turma com quem você costumava jogar. A verdade é que, agora, você dificilmente vai apresentar Perfil a alguém que esteja querendo conhecer jogos de tabuleiro. Mas está louco de vontade de testar Mysterium com sua galera.
Os jogos de tabuleiro modernos têm esse poder. Eles colocam os jogos clássicos no pedestal da nostalgia e abrem um mundo inteiro de possibilidades empolgantes para o futuro. É como uma ‘droga do bem’. A gente passa a querer mais e mais. Uma nova mecânica aqui... uma nova categoria ali... uma nova condição de vitória acolá... e quando você se dá conta, já está acompanhando o ranking de jogos no
BoardGameGeek e participando de leilões
aqui na
Ludopedia.
Ou vai me dizer que não comprou o Dixit depois de ter jogado uma única vez?
Tá, vá lá, duas vezes! A segunda sendo só pra confirmar se o jogo era realmente tão legal como tinha parecido antes, e aí foi realmente tão legal, e você desceu as escadas do segundo andar da
Ludoteca com determinação, andou até a prateleira sem hesitar, pegou seu Dixit com mãos firmes e levou até o caixa com bravura. E comprou o número correto de sleeves, muito prudente de sua parte! E se não foi o Dixit, foi o Bang!, ou o Coup (aliás, você já agradeceu à pessoa amiga que te apresentou ao hobby pra começo de conversa? Ela é uma pessoa importante. Cola nela).

Está tudo bem, você começou sua coleção, o hobby faz isso com a gente mesmo. Pelo menos você foi pé-no-chão e começou comprando só um. Ou terá você sido como eu, que resolveu mergulhar de cabeça comprando OITO de uma vez (e três expansões)? Pois é. Quem me apresentou os board games foi um amigo do curso de Biologia, um veterano entusiasmado que carregava sua sacola de jogos pelos corredores da universidade: o Dixit – como você já devia esperar – foi o primeiro. Que jogo lindo. Que conceito genial. Um jogo de imaginação, imagina só! Queria imprimir pôsteres de tantas daquelas cartas!... Logo em seguida, foi o 7 Wonders. Fiquei completamente bestificado. Todo mundo joga ao mesmo tempo? Isso deve ser pacto. Em seguida ele
mencionou (guarda essa palavra, ela vai ser importante!) vários outros: King of Tokyo, Love Letter, Small World, Dominion, Ubongo...
Moral da história; guardei dinheiro por um tempão e resolvi começar minha coleção comprando os poucos board games que eu tinha jogado e
todos os outros que meu amigo
mencionara – afinal de contas, se os que eu tinha jogado eram ótimos, certamente TODOS seriam também, não?! E de quebra, levei Dixit Odyssey e as três expansões que já tinham lançado na época.
Tomara que ainda dê tempo para este conselho: não cometa a insanidade de comprar um jogo sem antes jogá-lo, só porque parecia irado (apoiadores do
Kickstarter, eu entendo seus motivos, a gente conversa em outra crônica!). Faça uso das luderias. Jogue antes, teste com seu grupo, avalie se vale a pena. Eu dei sorte de gostar o suficiente de todos os jogos que comprei na época, mas é fato que alguns veem muito mais mesa do que outros. Cometi o mesmo erro um tempo depois com Tzolk’in e dessa vez aprendi a lição. Não curti. Não porque não seja um jogão, mas porque simplesmente não funcionou comigo.
Lição importante essa, viu? O mundo dos board games é sim imenso e incrível, mas isso não significa que você vai achar isso de todos os milhares de jogos lá fora. Aceita que dói menos: vai ter uma leva de jogos que vão ser simplesmente intragáveis pra você – como um certo The Resistance para um certo dono de uma certa
Ludoteca...
Agora que você passou por sua iniciação, começou sua coleção, venerou os sleeves e é verdadeiramente entusiasta do hobby, é seu solene dever passar a chama do board game adiante (juro que tentei pensar em algum jogo que use tokens de ‘fogo’ pra fazer um trocadilho, mas não me veio nenhum à mente).
Você vai apresentar o seu Dixit à sua família. Você vai convidar seus amigos para ir à uma casa de jogos ao invés de numa festa. Você vai introduzir aquele seu amigo que acha que jogo é só coisa de criança ao seu Dixit (e ele vai refletir sobre as mentiras em que acreditou a vida inteira). Você vai conseguir marcar rolês em luderias da cidade. Você vai jogar seu fiel Dixit com sua sobrinha que veio de longe te visitar. Você vai marcar mesas na
Ludoteca com pessoas novas que conheceu no
Joga Brasília (leitor não brasiliense, não se sinta excluído: basta trocar a palavra ‘Ludoteca’ pela luderia de sua preferência em sua cidade e ‘Joga Brasília’ por outro evento geek).
E quando você menos esperar (prepare-se, cenas fortes), você vai estar enjoado de jogar Dixit. Você vai ficar com preguiça de escolhê-lo para jogar com sua amiga novata porque não aguenta mais olhar pra carta com o rapaz de guarda-chuva amarelo e dar a mesma dica de sempre (‘How I Met Your Mother’, no caso). Ou então vai começar a inventar variantes para continuar conseguindo jogar Dixit sem surtar – minha favorita, por exemplo, é que só valem dicas com nomes de filmes. O Dixit vai virar o Imagem & Ação da sua nova era.
E estará tudo bem.
Ele saberá que você o ama e estará ali na estante para quando você precisar de um pouco de nostalgia. “Lembra em 2018?”, você dirá para seus amigos, “Quando eu tinha certeza que Dixit era o melhor board game do mundo?!”. Todos vão rir com saudade e um certo deboche, mas você, agora um veterano, vai saber no fundo da sua alma que não estava errado. Vai pensar rapidamente em quantos jogos favoritos já teve desde então, sacudir a cabeça e continuar montando aquela imensa mesa de Scythe.
P.S.: Mas Jogo da Vida nunca mais. Jogo da Vida é chatíssimo.
[Crônica originalmente publicada em 23 de agosto de 2018, no Blog da Ludoteca - blog.ludoteca.com.br]