Propaganda do jogo 1829, de Francis Tresham, ainda nos anos 70
Dados os últimos acontecimentos, muita gente fez essa pergunta, certo? E, de fato, é difícil negar que investimentos em ferrovias seriam uma ótima ideia. Infelizmente, acho bem pouco provável que aconteça na realidade por aqui, mas se serve de consolo, pelo menos existem excelentes opções para quem quer investir em companhias de trem no mundo dos jogos de tabuleiro.
Já escrevi sobre jogos de trem (uma tentativa de "histórico" do gênero) em outro texto, então esse aqui tem outro propósito: falar de alguns bons representantes dos gêneros de jogos de tabuleiro onde o objetivo é ganhar dinheiro como investidor em companhias de trem, isto é, jogos que não apenas envolvem a construção de uma malha ferroviária, mas o mercado de ações das companhias envolvidas. Isso significa que ficarão de fora, por exemplo, jogos da família Steam ou Ticket to Ride, que focam apenas na construção de rotas (e, no caso do Steam, entrega de mercadorias), mesmo que, como no caso do Steam, haja dinheiro envolvido.
Chicago Express
Ah, jogos econômicos de trens? Tá falando daqueles jogos horrorosos, super longos e com um monte de regras?
É, admito que pra muitos jogos desse nicho há fundamento nessa crítica. O que definitivamente não é o caso do Chicago Express. Trata-se de um jogo com regras super simples (mas que dão margem à partidas em que a riqueza tática/estratégica é sublime!), que tem uma duração tão boa que não é raro dar vontade de jogar uma partida atrás da outra (por volta de 45 minutos), e, convenhamos, o jogo é lindo. O tabuleiro usa a arte no estilo Americana e os marcadores de ações são como mostradores de máquina a vapor, com o marcador embutido no tabuleiro.
Ok, e como funciona o jogo? Bom, inicialmente leiloa-se as ações iniciais de quatro empresas ferroviárias. A partir daí, cada jogador, em sua vez, têm três possíveis ações para fazer:
1) Leiloar mais uma ação
Ele escolhe qualquer ação disponível nos cofres de uma empresa e coloca ela a leilão. Isso dilui o valor da empresa, pois uma ação a mais foi emitida. Isto é, se logo no começo do jogo cada empresa paga 100% dos dividendos pra quem detém a única ação - aquela leiloada no começo do jogo - quando uma segunda ação daquela empresa for leiloada, os dividendos serão divididos ao meio, com a terceira divididos por três, e assim por diante, (sempre arredondado pra mais). Num jogo de controle de ações, o valor das ações têm que mudar de alguma forma, certo? Isso acontece com as outras duas ações que os jogadores podem fazer na sua vez:
2) Expandir uma companhia ferroviária
Usando o dinheiro no cofre das empresas (cada vez que uma empresa emite uma ação, o valor pago pelo lance mais alto do leilão vai para a empresa), ela pode colocar até 3 trens no tabuleiro, sempre conectados à sua rede já existente (cada empresa começa numa cidade específica, no leste do tabuleiro). Há custos para expandir a rede, dependendo do terreno (e também se outra empresa já chegou lá antes, para os lugares que podem ser ocupados por mais de uma), mas também, claro, vantagens para as empresas: expandir sua malha ferroviária para montanhas e cidades faz com que sua empresa seja mais lucrativa, e assim distribua mais rendimentos por ação.
3) Desenvolver locais no mapa
Desenvolvendo uma cidade ou um local de montanha, ela aumenta os rendimentos de uma companhia - tanto as que já estavam lá quanto quem chega depois. Na maior parte dos casos, só pode haver um desenvolvimento, mas há "cidades industriais" que podem ser desenvolvidas mais de uma vez. Essa ação pode ser usada também em terrenos de floresta - nesse caso, eles dão $2 para a empresa que tem trem lá (meio que uma forma emergencial de dar dinheiro pra empresa, quando não há mais ações para leiloar, por exemplo).
(Foto: Antony Hemme)
Lembra que eu falei dos marcadores embutidos no tabuleiro (como esse aí de cima)? Eles dizem quantas vezes cada ação já foi feita naquela rodada. Leilões? Só três: quando alguém faz o terceiro, ninguém faz mais por enquanto. Ações de desenvolvimento são quatro, e expansão de ferrovias são cinco. Aí quando duas dessas três ações chegarem no máximo, a rodada termina. E é nessa hora que acontece o que quem já jogou qualquer jogo de investimento em ações já reparou que tava faltando falar: os acionistas recebem seus dividendos! Por exemplo: se o valor da New York Central chegou a 14, e ela emitiu um total de três ações, seus acionistas recebem, por ação, $5 (pois os rendimentos são divididos pelo número de ações em jogo, mas arredondados pra cima). Pagos os rendimentos de todas as empresas, há um desenvolvimento "automático" da cidade de Detroit, que sempre aumenta seu valor ao fim de cada rodada, os marcadores voltam pro inicial e começa-se uma nova.
Isto é: o jogo é daqueles que envolve habilidade em investimentos (vale a pena pagar caro por essa ação agora? será que ela vai pagar bem pra que valha a pena pra mim?) e em psicologia de grupo (será que consigo convencer o coleguinha a pagar caro por essa ação no próximo leilão? Assim ele gasta muito e ainda dilui os próximos pagamentos dessa empresa, de que eu nem tenho ações!), além do fato de ter "alianças temporária", já que muitas vezes vale a pena jogadores "se ajudarem" quando ambos têm ações na mesma empresa.
Mas tem um último "tempero" no jogo. Ele se chama Chicago Express, certo? Não necessariamente acontece em todo jogo (muitas vezes os jogadores preferem ficar valorizando as rotas no meio do tabuleiro mesmo), mas quando uma empresa chega lá no lado noroeste do mapa, especificamente em Chicago, aparece uma novidade: além da empresa que chegou lá ganhar uma rodada "bônus" de dividendos (só os acionistas dela recebem) uma quinta empresa abre: a Wabash, que tem apenas *duas* ações. Como em geral isso acontece lá pro fim do jogo, a dúvida é cruel: vale a pena pagar caro por uma ação de uma empresa que provavelmente não vai pagar dividendos muitas vezes? Ou posso arriscar e ganhar muito dinheiro sozinho, ou no máximo dividindo com mais uma pessoa?
O jogo termina se três ou mais empresas estiverem sem ações ou sem trens, ou se houver três ou menos "casinhas" (indicadores de desenvolvimento no mapa) disponíveis, ou se o desenvolvimento de Detroit chegar a 8 (lembrando que ela sempre sobe, sozinha, 1 por rodada).
Chicago Express é um jogão, e agora que há uma representante da Queen (a Calamity Games) por aqui, bem que dá pra sonhar com a vinda desse jogo pro Brasil.
18XXs
E pra quem quer "pegar mais pesado" no mercado de ações, com empresas ferroviárias lutando pra conseguir capital, e seu valor de mercado tendo mudanças drásticas de acordo com quão bem ela faz dinheiro e distribui dividendos com sua malha ferroviária? Aí não tem jeito - os jogos que fazem isso super bem são os 18XX.
A lista é enorme - há hoje mais de cem jogos do gênero cadastrados no BGG (e muitos que nem estão lá ainda), mas a ideia central desses jogos é a seguinte: os jogadores são investidores que abrem empresas ferroviárias de capital aberto (inclusive escolhendo quanto ela vale já na hora que é aberta), que constroem malhas ferroviárias (enquanto ferram a construção dos amiguinhos) e compram trens que dão dinheiro a essas companhias - dinheiro que pode ficar no cofre das empresas (pra ser usado nas construções e nos trens) ou ser distribuído aos acionistas.
Detalhe do 18XX Steam Over Holland (Foto: Aldaron)
O problema é: com tantos jogos, por onde começar? Há várias coisas que mudam de um pro outro - se o mercado é "2D" (o que em geral permite mais manipulações financeiras) ou linear, se é preciso vender um certo número de ações até que a companhia funcione ou basta abrir logo de cara e já partir pra construção de trilhos e compra de três em seguida, se a chegada de trens modernos imediatamente tornam obsoletos os mais antigos ou se isso é feito de forma mais suave, etc. Costuma-se (costumava-se?) fazer uma divisão entre os jogos "mais pra quem quer manipular mercado, via capitalismo selvagem" (ou, na linha do 1830) e os "mais pra quem quer ganhar dinheiro com boas empresas e construções de rotas" (ou, na linha do 1829), mas, hoje em dia, essas divisões são meio difusas. Há realmente 18XXs pra todos os gostos, então talvez uma pergunta mais razoável seja: o que dá pra comprar?
Sim, porque tem um detalhe: apesar deles existirem às dezenas, a maior parte deles estão fora de catálogo, ou são feitos em editoras que imprimem por demanda, de forma quase artesanal (é o caso dos jogos produzidos pela All-Aboard Games, Golden Spike Games e Marflow Games), o que significa que só o jogo já custa por volta de cem dólares. A sorte pros fãs do gênero é que têm saído alguns títulos pelas editoras usuais. A GMT, por exemplo, lançou o excelente 1846, de que já falei aqui (1846: Um 18XX para novatos e veteranos), já anunciou que está produzindo também o 1862, e está tão satisfeita com o sucesso do 1846 (além de ter vendido muito bem ele hoje já é o jogo #552 no Ranking do BGG e tem mais de mil avaliações, algo raro para um jogo econômico de peso).
Com sorte, deve dar pra conseguir também nos ebays da vida alguns títulos que estão hoje fora de catálogo mas que tiveram tiragens grandes, como 1830, 1856, 1870, 1835 e 1853. Ou, se você tiver talento manual (e paciência pra muito corte e colagem), fazer você mesmo alguns dos que estão disponíveis como print and play - provavelmente o melhor seja o 1889, que se passa na ilha de Shikoku, no Japão, e é mais na linha do 1830: dá pra acabar rápido com o valor de uma empresa, jogar ela no colo do coleguinha que vai arcar com o prejuízo com os trens enferrujando, enfim, essas coisas que os Robber Barons faziam pra se divertir e ganhar rios de dinheiro no século XIX.
A versão PnP do 1889 (Foto: Mihai Stanimir)
Trick of the Rails
Dá pra ir pro outro extremo de complexidade? Claro, é só escolher o que provavelmente é o jeito mais simples de jogar algo que envolva investimento em companhias de trem: o Trick of the Rails, um filler de cartas que junta a mecânica de vaza com a de comprar ações em companhias que vão ter valor modificado pra mais ou pra menos dependendo da "rota" que elas façam. A cada "vaza", a carta que ganha pode ter diferentes papéis: ela pode valer a ação de uma companhia ferroviária (que o jogador então coloca à sua frente), ela pode valer por cidades que uma dada companhia visita (essas cartas ficam no meio da mesa, com cada fileira representando o percurso que uma companhia pode fazer com cidades que dão mais ou menos rendimentos à cada companhia), e cartas que representam locomotivas: cada companhia receberá uma de acordo com o resultado das vazas, o que faz com que ela possa pontuar por mais ou menos cidades visitadas (de acordo com o alcance da locomotiva).
(Foto: Mark Palframan)
Assim, no fim do jogo, cada empresa terá um rendimento determinado pelo total de cidades visitadas pela locomotiva, descontado o preço da própria locomotiva. Multiplicando-se esse rendimento pelo número de ações que cada jogador conseguiu daquela empresa ao longo do jogo, têm-se o retorno do investimento do jogador naquela companhia - e assim, somando o investimento de cada um em todas as companhias do jogo, têm-se o resultado final. O jogo é super rápido, é muito bom em 3 jogadores, ainda bacana em 4, mas completamente caótico em 5. Como o número de cartas é o mesmo, quanto mais jogadores menos vazas ocorrem, e assim o controle da situação fica completamente comprometido com 5 e não dá pra fazer muita estratégia a longo prazo.
Steam Barons
-Pera aí, você não tinha dito lá em cima que jogos sobre investimentos em companhias de trem não incluiriam a família Steam?
Isso é verdade, mas tem uma exceção: a "expansão" Steam Barons, lançada no mesmo ano do próprio Steam. Coloco entre aspas porque apesar dela ser uma "expansão" no sentido de precisar de componentes do Steam para ser jogada, ela muda drasticamente o jogo. Ao invés de cada um ter sua cor, como no Steam original, aqui a ideia é que cada cor é uma empresa, que pode emitir ações em leilão e aí vale a lógica dos jogos citados acima: é o presidente (quem mais tem ações da empresa) que decide o que ela faz, mas dividendos são distribuídos a todos os acionistas da empresa. Como no Steam, cada entidade tem direito a duas entregas por rodada (só que aqui a "entidade" é a empresa, não o jogador). E aí vem o mecanismo de pagamento de dividendos e valorização das ações, que é diferente de tudo que eu já conhecia em jogos econômicos de trem. Um dos componentes incluídos é o mini-tabuleiro adicional abaixo, que serve para controlar tudo que se refere ao mercado de ações:
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De acordo com o total de entrega das empresas, a tabela mostra quanto de dinheiro vai pra cada acionista (por exemplo, se a performance final naquela rodada foi 12, o dividendo é $4 (e assim cada jogador recebe esse valor por ação dessa empresa que tiver comprado), a própria companhia recebe $5 (ela precisa de dinheiro para construir trilhos), e o presidente da empresa recebe um bônus de $1, além do que já recebeu por suas ações.
A variação de preços das companhias se dá pela sua comparação em relação às demais. Se todas as empresas renderam o mesmo (isto é, todos os tokens que indicam a performance da companhia estão empilhados), os valores das ações não mudam. Se foram formadas três pilhas (isto é, das 6 companhias houve três valores de performance diferentes), as que tiveram a melhor performance sobem $1 no valor da ação, as do segundo grupo não mudam, as do terceiro perdem $1 no valor da ação. No caso mais extremo (todas as 6 companhias tiveram valores diferentes de performance), a melhor sobe $5, a segunda melhor $3 e assim até chegar à última casa - a pior empresa perde $3 em seu valor de ação.
Note as "pilhas" no track de cima, para definir quem sobe e quem desce no mercado de ações (Foto: doom18)
Esse mecanismo, que é bem diferente dos usados nos 18XXs ou em jogos econômicos de trem da Winsome como o Chicago Express, permite estratégias interessantíssimas: na última vez que eu joguei, por exemplo, eu fiz com que uma empresa que eu controlava desse rendimentos bem ruinzinhos. Resultado: ela desvalorizou e ninguém quis comprar as ações dela. Mas eu sabia o que estava fazendo - dava pra me planejar pra fazer umas entregas excelentes na rodada seguinte - e aí comprei barato um monte de ações da minha própria companhia, e na última rodada ela pagou excelentes dividendos por ação (que eu ganhei quase sozinho), deu bônus pro presidente (eu mesmo) e ainda por cima as ações valorizaram bem na última rodada. Isto é, aquelas ações que ninguém quis e eu comprei barato de repente terminaram o jogo valendo mais do que eu tinha acabado de pagar - perfeito nesses jogos em que o escore final é quanto dinheiro você tem na mão mais o valor das ações que você comprou.
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Os certificados de ações no Steam Barons (foto: doom18)
Tem mais opções? Claro! Além do monte de 18XXs que existem por aí, ou dos vários jogos desenvolvidos pela Winsome que envolvem investir em ferrovias, vale a pena também ficar de olho no que fazem dois autores que gostam bastante de brincar com os conceitos de investimento em companhias de trens e fazer coisas diferentes: Leonhard "Lonny" Orgler e Helmut Ohley. Eles já fizeram 18XXs "tradicionais", mas gostam também de ver como criar novas variações no mundo dos trens - seja com mecânicas mais "euro" como no hit de alocação de trabalhadores Russian Railroads, seja subvertendo as mecânicas tradicionais de jogos de investimento em ferrovias como eu dois jogos que estou curiosíssimo para testar: Railroad Barons, um jogo de cartas para dois jogadores que funcionaria como um "meta-18XX", com jogadores controlando holdings de companhias ferroviárias ganhando dinheiro em cima de seu mercado, e 18Lilliput, uma adaptação mais "família" dos conceitos dos 18XX que inclui também poderes variados entre os jogadores e seleção de ações que está em financiamento coletivo e deve sair no fim do ano. Vindo de quem veio, já estou curioso!