Desde que entrei no "hobby" dos jogos de tabuleiro, venho me fazendo essa pergunta constantemente: o que realmente é um hobby? Minha principal referência é um texto de Theodor Adorno chamado "Tempo livre". Discordo em vários pontos do pensamento frankfurtiano, mas vale a pena a leitura deste texto:
http://web.unifoa.edu.br/portal/plano_aula/arquivos/04848/TEMPO%20LIVRE.pdf
Para aqueles sem "tempo livre" para ler o texto, gostaria de citar o trecho que nos interessa diretamente:
Para esclarecer o problema, eu gostaria de fazer uso de uma pequena experiência pessoal. Em entrevistas e levantamentos de dados, sempre se é questionado sobre o seu hobby. Quando as revistas ilustradas informam a respeito de algum figurão da indústria cultural, falar dos quais é, por sua vez, a ocupação principal da indústria cultural, poucas vezes perdem o ensejo de relatar algo mais ou menos íntimo sobre os hobbies dos mesmos. Quando me toca essa questão, fico apavorado: Eu não tenho qualquer hobby. Não que eu seja uma besta de trabalho que não sabe fazer consigo nada além de esforçar‐se e fazer aquilo que deve fazer. Mas aquilo com o que me ocupo fora da minha profissão oficial é, para mim, sem exceção, tão sério que me sentiria chocado com a idéia de que se tratasse de hobbies, portanto ocupações nas quais me jogaria absurdamente só para matar o tempo, se minha experiência contra todo tipo de manifestações de barbárie — que se tomaram como que coisas naturais — não me tivesse endurecido. Compor música, escutar música, ler concentradamente, são momentos integrais da minha existência, a palavra hobby seria escárnio em relação a elas. Inversamente, meu trabalho, a produção filosófica e sociológica e o ensino na universidade, têm‐me sido tão gratos até o momento que não conseguiria considerá‐los como opostos ao tempo livre, como a habitualmente cortante divisão requer das pessoas.
Também para mim, chamar de "hobby" algo como jogar e brincar seria um escárnio. Também para mim, jogar e brincar são momentos integrais da minha existência. Digo isto porque vejo nosso "hobby" tanto como uma das qualidades humanas capazes de justificar a existência (viver para o prazer de jogar) quanto como um ideal capaz de melhorar o mundo. Neste último ponto, me refiro não apenas às experiências pedagógicas e terapêuticas envolvendo os jogos, mas também à criação de uma sociedade lúdica. Contudo, o que seria uma sociedade lúdica? Tento imaginar essa utopia cujo principal valor é jogar e às vezes percebo que nosso próprio mundo é uma distopia lúdica. Basta pensar no exemplo do esporte, uma das indústrias mais lucrativas hoje. A ideia de jogar, brincar, etc., já passa longe desse universo, tomado hoje pela lógica da profissionalização. Me foge agora o nome do filósofo que dizia que todo esporte deveria ser praticado por amadores, denunciando justamente a inversão de valores desse universo. O mesmo parece está acontecendo com nosso "hobby", claro que não pela profissionalização dos jogadores (não existem muitas competições oficiais, até onde sei), mas sim pela profissionalização dos criadores. A profissionalização dos criadores leva a uma disputa de melhores jogos, mecânicas, etc., etc., e a simples ideia de jogar e brincar vai perdendo espaço. Muitos aqui odeiam Banco Imobiliário/Monopoly, apesar do apelo nostálgico (eu mesmo, veja minha nota 4,0). Mas por que não gostamos de Banco Imobiliário? A resposta é simples: mecânicas mal trabalhadas, ou melhor, mecânicas mal trabalhadas que afetam a experiência de jogo. E aí chegamos ao ponto decisivo (desculpem o longo rodeio): o que é uma experiência de jogo? Ela se reduz ao que o jogo oferece para mim? Ou ao prazer que eu e os demais jogadores compartilhamos durante a partida? E este prazer que compartilhamos, provém somente do jogo? Será que quando estou jogando, estou me preocupando com o prazer do próximo? Enfim, perguntas que talvez expliquem por que Banco Imobiliário era tão divertido no início do século XX e por que já não é mais. O que mudou ao longo do século? O que era jogar para nossos avós e o que é jogar para nós?