A Lei de Murphy original, proposta pelo engenheiro espacial Edward A. Murphy, Jr., propunha que "se houveram duas soluções para uma coisa e uma delas levar à uma catástrofe, será essa a escolhida". No popular, a sentença se popularizou como "se algo puder dar errado, vai dar errado" e se tornou, mais do que uma brincadeira, uma verdade sobre o universo, o destino e o caos. pelo menos para alguns. O fato é que, conforme explica a ciência, é possível mostrar porque temos essa impressão pessimista pelas coisas e eventos à nossa volta, como mostra esse artigo aqui (http://brasil.elpais.com/brasil/2015/06/19/ciencia/1434705663_423636.html).
Apesar disso, parece que há dias e situações específicas em que a Lei de Murphy realmente se instaura na sua vida. E se tem algo em que é fácil notar, pelo menos para nós brasileiros, é quando entramos nessa de financiamentos coletivos. Sejam nos gringos ou nos nacionais, estamos fadados a ter que lidar com as intempéries da vida. E quando tudo pode dar errado, realmente dá! Estamos lidando diretamente com atrasos, com produções ruins, com problemas nas entregas e greves, sejam elas dos Correios ou da Receita. O caso mais recente é o do jogo Imperial 2030, da Pensamento Coletivo, que depois de dezenas de atrasos na produção, chegou ao Brasil bem na época da greve dos Correios e, pra quem teve a sorte de receber o jogo, ainda veio com erros de produção (um deles bem grave).
Mas quero contar pra vocês um caso gringo. Sim, pra mostrar que não é só em solo tupiniquim que a coisa anda, vamos dizer, numa "maré de azar", pra poupar acusações aqui e ali. Vou contar a história do financiamento coletivo, via Kickstarter, do jogo Unfair. Droga, nenhum piadinha pode ser mais injusta do que essa. Lançado pela Good Games USA, o projeto foi ao ar em agosto de 2016. A meta era atingir 47 mil dólares para publicar o lindo card game com tema de parque de diversões e com promessa de muita interação na mesa através de ações "unfair", que poderiam prejudicar o adversário na criação de suas atrações. A premissa me atraiu de cara, mas mais ainda a arte linda e colorida. Era o tipo de jogo que faltava na minha coleção. E haviam strech goals alcançados que deixavam o financiamento ainda mais interessante. Nas convenções ao longo do ano, o jogo chamou bastante atenção de quem o viu (na GenCon, foi super elogiado). Os comentários dos reviewers eram excelentes também (os caras do Man vs Meeple adoraram e outros divulgadores de conteúdo também falavam super bem do protótipo do jogo).
"Ok", você vai dizer, "... mas 49 dólares por um card game não está barato". É, não estava mesmo. Mas não era um card game simples, só com cartinhas como Parade ou Oh My Goods!. Unfair vinha numa caixa padrão de 30 x 30cm, com um tabuleiro central para os diferentes baralhos do jogo, além de diversos marcadores de papelão com boa espessura, uma miniatura de carrinho de montanha-russa como marcador de rodadas, além de um insert excelente, de dar inveja em muitos jogos parrudos, que seria capaz de guardar 10 decks diferentes com 60 cartas cada e com sleeves, e ainda sobrar espaço. Isso sem contar que haveriam duas expansões inclusas no jogo. Fiz o pledge, nada barato, de 49 dólares e mais 15 de frete, na esperança de não pagar muito pela importação.
O financiamento foi bem sucedido, alcançou quase 300 mil dólares e prometia ser o grande lançamento do fim daquele ano, uma vez que a previsão de entrega era para dezembro. Era.
As coisas começaram a desandar logos nos primeiros meses após a campanha. A produtora do jogo sempre mantinha os "financiadores" informados da produção, com gráficos bem bonitos e tal, falando sobre o andamento da arte, da produção, da preparação do material e etc. Sempre dizendo que estava tudo em dia. Inclusive, na última atualização antes da feira de Essen em outubro, a arte, design e preparação dos arquivos para impressão estavam todos ok. As coisas começaram a desandar em novembro. Quando os caras fizeram um update no dia 1º de novembro falando de toda a produção e, lá no meio das informações, haviam um item dizendo que a impressão das cartas não havia iniciado, eu sabia que ia dar errado. A previsão de entrega pra dezembro já tinha ido por água abaixo. Mas a "desculpa" dos caras era a de que durante os play tests alguns jogadores haviam reclamado de algumas expressões que não estavam claras, então foi necessário corrigir algumas coisas dos textos. Bom, pelo menos não iria acontecer o que aconteceu com o Martians: A Story of Civilization (outra campanha de Kickstarter que participei ano passado, que veio repleto de erros e com um manual péssimo - mas isso é outra história). Mas o problema ficou ainda maior quando, na atualização seguinte, já no final de novembro, os caras alegaram que teriam que produzir 6 mil cópias do jogo e que isso os estava atrasando. Somente naquele momento é que havia começado a impressão das cartas. Somente naquele momento a Good Games USA se pronunciou em tom de atraso e avisou que os envios deveriam começar somente em janeiro, com a maioria dos apoiadores recebendo suas cópias somente em fevereiro, outros em março.
Mas olha só, não é só no Brasil que vivemos de atrasos. Na atualização de janeiro, sim, quando o jogo já deveria estar sendo enviado, os cara falaram de mais um atraso na produção "em nome da qualidade", como eles disseram. Nesse, a editora alegou que haviam coisas a melhorar e que somente depois de finalizar as 6 mil cópias do jogo para os apoiadores é que eles iriam iniciar a produção da versão retail. Mas, que engraçado, ela estaria pronta 10 dias depois. Veio aquela sensação de "as lojas vão ter o jogo antes de mim". Acho que já sentimos essa sensação por aqui, certo? Mas para suavizar a sensação, havia uma frase que dizia o seguinte: os apoiadores da União Europeia irão receber o jogo em março, Estados Unidos, Canadá, Austrália e Nova Zelândia iriam receber também em março, porém o resto do mundo iria receber diretamente da China, por airmail (não por navio, como geralmente é feito o envio para o Brasil que demora meses) e deveria chegar em fevereiro. Isso aconteceu? Não.
Além dos atrasos, outros problemas começaram a aparecer quando os primeiros apoiadores receberam suas cópias. Aparentemente alguma cartas estavam com tamanhos diferentes (decks inteiros, pelo visto). A empresa se pronunciou e disse que iria repor para os apoiadores que tiveram esse "azar" e que esse erro na produção tinha sido mínimo, apenas em alguns casos isolados. Pelo visto, foram bem poucos mesmo.
Enfim, chegou março. E nada da minha cópia aparecer. Aliás, nem meio um código de rastreio eu tinha recebido. Entrei em contato com os caras várias vezes pedindo atualizações e sempre recebia a resposta de que estava tudo normal, que iriam enviar, ou que a previsão era março mesmo - sendo que não era. Por fim, no final de março já, mandei mais uma vez que não havia recebido e a resposta dos caras, para a minha surpresa, foi "você não recebeu ainda?". Como assim, galera? Eu tava avisando desde fevereiro que não havia recebido. No frigir dos ovos, a Good Games USA me informou que iria enviar a minha cópia direto da Inglaterra, através de uma loja parceira, via DHL, em regime expresso, e que deveria chegar em até 5 dias. Mas a vida, ela não é justa. E se há algo que aprendemos com a Lei de Murphy é que se há algo que pode dar errado, vai dar. O jogo foi enviado no dia 21 de março. Chegou em São Paulo no dia 23. E por lá ficou.
O que as empresas lá de fora não sabem é que quando o envio para o Brasil é feito via courier, ou seja, uma empresa de entregas como a DHL, ou a FedEx, há 99% de chances de taxação. E pior, que se você não informa o valor correto da remessa, quem paga a multa é o importador, ou seja, eu. A tal parceira da Good Games USA, a loja GamesQuest, de Londres, fez o favor de informar um valor abaixo no envio da caixa, a Receita parou, achou estranho e travou a encomenda. A DHL me solicitou todos os documentos, invoices e etc, os quais eu forneci no dia seguinte, dia 24 de março. Porém, como estamos no Brasil, as coisas que podem dar errado realmente dão, e do pior jeito possível.
Somente no dia 27 de abril a Receita resolveu responder à DHL sobre a encomenda, alegando que havia irregularidade nos documentos e que iria multar, além de cobrar o imposto regular. O imposto ainda nem foi o correto, 60% sobre o valor real do jogo + frete. O que deveria ter sido uns 130 reais, virou 260. O problema é que a tal multa foi de 188 reais. Ou seja, o valor do jogo que já era de 49 + 15 dólares (mais IOF do cartão), ainda foi acrescido de sei lá quantos porcento e mais 188 reais de multa. Custo total do jogo? Meros 660 reais. E quais as opções eu tinha? Pagar ou devolver o jogo, pelo qual esperei 8 meses e já havia pago. Resolvi pagar. E ainda tive que esperar até ontem, dia 03/05, para receber o tal jogo.
Quais os passo agora? O martírio ainda não acabou. Eu, sem dúvida alguma, vou recorrer do valor cobrado pela Receita e ainda vou levar uns bons meses nessa novela até que a decisão judicial saia, para saber se vou receber alguma parte do valor de volta. O correto, como se trata de envio de valor menor que 100 dólares, é que eu não tivesse pago nenhum centavo, conforme a legislação brasileira. Porém a Receita não gosta de seguir a legislação. E como vivemos sob a Lei de Murphy, corro o risco de ainda ver o meu pedido ser indeferido ou de ainda ter que pagar mais, sei lá pelo que. Porque com financiamento coletivo, estamos fadados a sempre ter que esperar o pior.
- esse é um texto meu escrito há alguns dias que desisti de publicar aqui. Mas se tornou oportuno nessa discussão.